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AMÓS OZ fala da Guerra, da Paz e do Futuro:




 
"Eu me recusaria a lutar por qualquer coisa que não fosse pela vida e pela liberdade..."
 

 
 
 
A improvável história do Estado de Israel, 60 anos, acossado, sobrevivendo – é entrelaçada com a improvável história de Amós Oz. Ele é, ao mesmo tempo, o seu mais famoso romancista, seu mais apaixonado defensor e seu mais notório “traidor” - uma palavra que ele usa para si mesmo. Seu amigo David Grossman diz que "Amós é o fruto de todas as dores e contradições que habitam a psiquê israelense”. Passar um dia em sua companhia – acompanhar a sua história desde o nascimento do Estado até ao suicídio da sua mãe, do idealismo sionista até um coração partido – é fazer uma viagem pelas estonteantes dissonâncias do Estado judeu quando ele entra pelo século XXI.

Oz está sentado na cafeteria da livraria Joseph's em Golder's Green, norte de Londres, parecendo mais velho e mais frágil. Está agora com 70 anos, o cabelo maio ralo e grisalho. Saúda-me com uma voz grave e pedimos cafés puros. Faz muito tempo, mas Oz já sonhou em bombardear esta mesma cidade. Quando criança chegou a participar do que chama de “intifada judaica” – a rebelião de judeus que, desafiando a morte, atiravam pedras contra os ocupantes britânicos. Ele acreditava que o país que iria emergir das ruínas iria ser um modelo de justiça e idealismo para toda a Humanidade. 

Se fosse uma criança em Gaza hoje, senhor Oz, estaria sonhando o mesmo tipo de sonhos contra Israel? "Eu nem tenho que imaginar a resposta a esta questão – eu a conheço”, diz ele. “Porque eu era uma criança em Jerusalém em 1948 quando a cidade foi sitiada, bombardeada, esfomeada [e] o suprimento de água cortado. E conheço o horror, conheço o desespero e a desesperança. Conheço o ódio e a frustração... As primeiras palavras que aprendi a falar em inglês foram ‘British, go home!'" .

Em seu romance “Pantera no Porão”, ele escreve: “É assim que eu lembro de Jerusalém no último verão sob o domínio britânico. Uma cidade de pedra escalando as encostas. Menos uma cidade do que bairros isolados separados por campos de folhas secas e rochas. Os carros blindados britânicos ficavam nas esquinas com suas escotilhas quase fechadas, suas metralhadoras esgueirando-se como que apontando os dedos: Atenção, vocês”.

Aos oitos anos, ele construiu “um incrível foguete” no quintal da sua casa. Seu plano era “atira-lo ao Palácio de Buckingham. Datilografei na máquina de escrever do meu pai uma carta de ultimato dirigida à Sua Majestade, o Rei George VI da Inglaterra... Torrentes de sangue, terra, fogo e ferro me intoxicavam”. Sua canção favorita, um hino da Gang Stern [grupo terrorista judeu], proclamava: “Precisamos lutar até que não possamos mais respirar!”.

Então, como é que este menino, desse lugar, acabou sendo um dos fundadores do PAZ AGORA, e a lutar por um Estado Palestino livre ao lado de Israel? Que contorções ele sofre pelo caminho desde então? E como a história de Israel chegou a este ponto?

I. Sonhos de Jerusalém 

Amós Oz nasceu em Jerusalém porque os seus pais não tinham nenhum outro lugar para ir. Eles correram para sobreviver. “Foi a única trilha de vida que eles puderam encontrar”, diz ele. “Meus pais tentaram se tornar americanos, aí tentaram ser britânicos, escandinavos - mas ninguém os queria. Em lugar nenhum. Seria assim um erro supor que nos anos ’30 os meus pais tivessem ido a uma agência de turismo e perguntado sobre algum resort de férias e se tivessem equivocado - tivessem pensado na ‘Riviera Francesa’ e por erro tivessem dito ‘Jerusalém’”.

Era uma cidade de “telhados finos empoeirados, terrenos áridos com sucatas de ferro e encostas ressecadas”. Para seus pais, foi um choque desconcertante. Eram “refugiados involuntários da Europa, que amavam a Europa e foram por ela expulsos. Eram europeus devotos num tempo em que ninguém mais se considerava europeu. Todos outros eram ou pan-germânicos ou pan-slavônicos ou apenas patriotas búlgaros ou ingleses. Os judeus eram os únicos “europeus” na Europa daquele tempo - e a Europa os expulsou. Eram rotulados como cosmopolitas, intelectuais sem compaixão, como parasitas. E chegaram a Jerusalém esperando criar uma pequena Europa no coração do Oriente Médio - um enclave europeu. E claramente não conseguiram. Porque ali não era Europa. Porque a idéia de Europa não era mais do que uma idéia e não uma realidade. A Europa que amavam não existia, exceto na sua própria imaginação”.

A mãe de Oz, Fania, nascera de uma próspera família judia em Rovno, cidade na Ucrânia Ocidental. Ela sonhava ser uma atriz e mergulhava nos trabalhos de Anton Chekhov. Mas, à época em que foi à Universidade de Praga, o anti-semitismo crescia rapidamente. Ela conseguiu escapar por pouco: os nazistas mataram seu irmão, sua cunhada e seu sobrinho. Eles mataram quase todos os seus amigos da escola. Mataram o mundo no qual ela se criou - e aí Stalin varreu tudo que ainda tinha sobrado.
Então Fania foi largada em Jerusalém, uma cidade seca e poeirenta que lhe era totalmente estranha. Oz diz que a vida dela consistia de “um cardápio introspectivo e melancólico de solidão num tom menor... Se alguma vez se falava sobre o passado, algo de amargo e desesperado surgia na sua voz”.

Berço de Direita

Seu pai, Ariê, foi forçado a deixar a Lituânia. Era “um bibliotecário culto, de boas maneiras, severo, mas também muito tímido”, diz Oz, que acreditava que o seu real destino - ser um grande estudioso de literatura hebraica - foi inexplicavelmente frustrado. Quando chegou a Jerusalém, alinhou-se com a direita do Ishuv [comunidade judaica da Palestina], que achava que os árabes da Palestina tinham que ser combatidos e forçados a sair. Fugido da perseguição nazista aos judeus, ele acreditava que os judeus tinham que mostrar força - e até mesmo brutalidade - ou morreriam. Ele escrevia peças de propaganda para a gang Stern, que bombardeava alvos britânicos e civis árabes e era rotulada de terrorista.
Mas seus pais tinham um sentimento de inferioridade e exclusão, mesmo dentro de Israel. "Nós eramos israelenses marginais”, diz. "A História estava acontecendo na Galiléia, nos vales e não em Jerusalém. Jerusalém estava fora do roteiro. E os meus pais estavam isolados das correntes principais do entusiasmo da revolução sionista. Estavam isolados porque eram direitistas num tempo em que todos eram socialistas, eram indivíduos urbanos quando todos trabalhavam a terra, eram acadêmicos num tampo em que isto era visto com certa desconfiança”.

Na noite em que a ONU votou para criar o Estado de Israel em parte do Mandato Britânico na Palestina, Ariê se aninhou na cama com o seu filho de oito anos. Ele me sussurrou: “De agora em diante, a partir do momento em que temos o nosso próprio país, ninguém vai te perturbar porque você é um judeu. Isso nunca mais. Desde esta noite isto acabou. Para sempre”. Foi a única vez que Oz viu o seu pai chorar.

Foi assim que ele acabou - como uma criança atual em Gaza - sob cerco. Ele lembra “a guerra, o bombardeio, o cerco e a fome” em fragmentos. Vivia no que sentia como um "num submarino”, embrulhado dentro da sua casa com os seus pais e abrigando outras famílias. Dormia sobre um cobertor no canto com seus pais, a comida racionada e as janelas cerradas, os remédios acabando e os banheiros entupidos de fezes, pois não havia água para descarga. "A cada poucos minutos, quando caía uma bomba, toda a colina e as casas de pedra tremiam”, diz. Havia um bombardeio pesado, cujo objetivo era provocar perdas entre a população civil, quebrar sua moral e torná-la submissa”.

Seus pais eram grandes linguistas: seu pai falava 11 línguas e lia 17. Mas mesmo quando ficavam presos juntos assim, sem nada para fazer, diz ele: “a única língua que me ensinavam era o hebraico. Talvez receassem que o conhecimento de línguas fosse remeter-me, também às seduções da Europa, aquele continente maravilhoso e mortífero”.
Ele foi criado sob bombardeiro para ser um militante, ridicularizar os ingleses, árabes e todo o mundo anti-semita. Seu avô o ensinou: “Temos que bater neles até que eles venham nos pedir a paz”. 

O senhor sente raiva quando pensa sobre a criança que foi?

“Não - eu me sinto entretido. Amargamente. Fui o produto de uma evolução militante em um tempo de militância, num estado de guerra, e cresci num mundo onde tudo era branco ou preto. Éramos brancos e os inimigos pretos. E nossos inimigos não eram apenas os árabes, mas o resto do mundo. O mundo inteiro. Alemães, Europa, Rússia - todos eram nossos inimigos. Estávamos sozinhos no mundo - éramos os poucos e justos. Havia algo de muito doce nesse mundo tão simples, que dividia entre bons e maus, algo muito atraente para uma criança em particular, claro. E tudo se encaixava bem no lugar”.

Parece ter havido uma pressão extraordinária sobre esta criança sozinha - de ser tudo o que seus pais não conseguiram ser. Quando o pai finalmente teve um pequeno trabalho acadêmico publicado, ele o dedicou ao filho de onze anos: “Ao meu filho Amós, com a esperança de que ele possa conquistar um lugar na nossa literatura”. 
Ambos os pais eram “imensamente inibidos”, e só conseguiam expressar uma pequena emoção, oculta atrás dessa ambição ardente. À medida que as notícias da morte da sua família e dos amigos começavam a chegar a Israel, sua mãe foi ficando mais doente e retraída. Ela começou a sentir “dores de cabeça” que duravam meses e faziam com que ela tomasse remédios misteriosos o tempo todo.

Então, uma noite, quando o Estado tinha nascido e Amós tinha 12 anos e meio, ela saiu em meio a uma tempestade em Jerusalém para o apartamento da irmã, foi para a cama e tomou uma overdose massiva. Tinha corrido pela vida, agora corria para a morte. Houve algum elemento de culpa por sobreviver ao seu suicídio? Ele olha para o lado. “Possivelmente. Não sei. Não sei as razões pelas quais ela se matou e já não tento mais saber. Duvido que... na maior parte dos casos, quando uma pessoa se mata, duvido que exista algo que seja a razão. Há uma desculpa, um motivo imediato, mas há mais do que apenas uma razão”. Ele sabe que o seu pai tinha um caso; sabe que sua mãe sentia-se só em Jerusalem. 

"Fiquei com muita raiva dela”, diz. “Fiquei com muita raiva do meu pai, e de mim mesmo. Eu culpava cada um de nós pela calamidade”, diz. Não o deixaram ir ao enterro. A raiva durou décadas. "Eu não tinha uma gota de compaixão em mim. Nem a esqueci. Não chorei a morte da minha mãe. Estava ferido e raivoso demais para que restasse qualquer outra emoção”. Foi sómente, explica, “quando cheguei à idade em que podia ser pai dos meus pais que consegui vê-los numa combinação de compaixão, humor e curiosidade”. Ele os fez personagens da sua obra-prima, o livro de memórias ‘De Amor e Trevas’.

Oz nunca conversou com seu pai sobre a morte da mãe: "Continuamos como se ela jamais tivesse existido”. Mas agora, através da escrita, pôde expressar tudo o que queria falar. “Tratava-se de convidar os mortos para a minha casa, oferecer-lhes uma xícara de chá ou café e dizer: ‘vamos sentar e conversar sobre o que nunca discutimos quando vocês ainda viviam’. Esta é uma prática que recomendo muito: convide os mortos para a sua casa de vez em quando, ofereça-lhes um café e um bolo, envolva-se numa boa conversa com os mortos e então diga-lhes para partirem - não os deixe ficar em casa. Que apareçam às vezes. Este é o relacionamento adequado entre os vivos e os mortos”. Será que foi o fato de ele mesmo ter os seus filhos que o tornou finalmente capaz de perdoar a sua mãe? "Sim, definitivamente”, diz com um gesto firme. De que forma? Ele silencia por um longo tempo. “Isto é pessoal demais. Não vou discutir isto, se você me permitir”. Então acrescenta, mudando de assunto: “Eu apenas me tornei velho o suficiente para imaginá-los como pessoas imaturas. Perdi o interesse na questão de quem seria o culpado”.

Dois anos depois do suicídio da sua mãe, Amós Oz deixou o seu pai e o mundo dele - e começou sua metamorfose para uma pessoa muito diferente.

II. Coragem 
Aos 14 anos, Oz escreveu "Matei o meu pai e toda Jerusalém, mudei de nome, e deixei as ruínas para viver no kibutz Hulda". Ele correu de Jerusalém para um kibutz - e trocou o sobrenome do seu pai, Klausner, por outro que inventou para si. 
"'Oz' significa força - e também coragem", diz agora. "Quando deixei minha casa aos 14 anos e meio, decidi tornar-me tudo o que meu pai não era, e deixar de ser tudo o que ele era. Ele era um intelectual de direita. Decidi ser um socialista de esquerda. Ele era um ser urbano. Eu decidi ser motorista de trator. Ela era pequeno. Resolvi ser muito alto. Não funcionou, mas tentei - eu tentei. Então, assumi o nome 'Oz', porque era de coragem e de força que eu mais precisava".

Voltando a Jerusalém, ninguém perguntava o que acontecera aos árabes que viveram na Palestina. Eles desapareceram durante a guerra, isto era tudo. No kibutz, Oz começou a escutar sussurros - que inicialmente despertaram nele choque e indignação. Esta havia sido a terra deles, que foram dela retirados, pela força, por nós. Isto poderia ser verdade?

Devagar, ele começou a imaginar os palestinos tirados das suas casas, amontoados em campos de refugiados podres em algum lugar fora das fronteiras de Israel - e a ver a semelhança entre eles e os seus próprios pais. Chegou à conclusão que "a luta entre os judeus israelenses e árabes palestinos é uma tragédia, e não um filme de far-west com moços bons e maus. É uma tragédia, porque é uma luta entre certos e certos. Os israelenses estão em Israel porque não têm nenhum outro lugar para ir. Os palestinos estão na Palestina porque não têm nenhum outro lugar para ir. Este é um conflito entre vítimas, e entre pessoas que têm todas elas uma reivindicação justa sobre a terra".

Em 1967, isto se tornou uma percepção crucial, mudando o curso da vida de Oz. Ele foi convocado e lutou na frente egípcia, no deserto de Sinai. “Eu quase não escrevi sobre a minha experiência como soldado no campo de batalha, porque quando tentei senti que estava além da minha capacidade de descrer”, diz. "O campo de batalha consiste principalmente de cheiros, e é muito difícil descrever odores em palavras - muito difícil. Existe um fedor no campo de batalha que não passa para os filmes de guerra e nos documentários de TV, e nem transparece nas reportagens sobre mortos e devastação e destruição nos campos de batalha. E este fedor particular, que eu recordo de forma muito vívida, muito física, eu lembro deste cheiro – e simplesmente não o consigo descrever em palavras, e sem ele, a descrição seria falsa".

Como o senhor agüentou isso? "Quando está no campo de batalha, você desliga a sua alma; do contrário, você morreria de terror - morreria de medo. Você desliga a sua alma e age como um animal ou uma máquina. As pessoas mudam muito debaixo do fogo. Sabe qual foi minha primeira resposta? Quando eu me encontrei sob fogo, e eu podia literalmente ver os soldados egípcios - foi em '67 – esses soldados egípcios na colina ao lado atirando morteiros contra nós, e as bombas explodindo nas tropas. Meu instinto imediato foi: 'chame a polícia! Essas pessoas estão malucas. Elas conseguem ver que tem gente aqui e estão atirando em nós!' Talvez esta tenha sido a última reação sã no campo de batalha: 'chame a polícia!'.

Ele diz, porém, que não fez nada de que se tenha arrependido. "Não acho, não. Fiz muitas coisas que lamento ter tido que fazer, mas nada de que me envergonhe. Para mim, lutar, tanto em 1967 quanto em 1973, foi um último recurso, porque eu sabia com muita certeza que se eu não lutasse, e os outros não lutassem... a minha família seria morta - seríamos jogados no mar. Não se tratava de territórios, nem de lugares sagrados. Era questão de vida ou morte. E numa guerra assim... mesmo que hoje eu esteja velho, eu nela lutaria. Se eles me puserem de costas para a parede e disserem: 'ou você luta ou a sua família será morta', eu vou lutar". 
As guerras para defender os colonos - ou a invasão do Líbano nos anos '80 - são diferentes, diz ele: ""Eu preferiria ter sido preso do que lutar nelas. Eu teria recusado lutar pelos territórios ocupados. Por um dormitório a mais para a nação. Por lugares sagrados. Por recursos. Eu me recusaria a lutar por qualquer coisa que não fosse pela vida e pela liberdade".

Em meio ao triunfalismo e a primeira corrente de colonos, Oz foi um dos primeiros israelenses a dizer que a terra que outros soldados tinham conquistado - Gaza e Cisjordânia - deveriam ser devolvidas aos palestinos para que fizessem o seu próprio Estado. "Eu me perguntava: 'Como eu iria me sentir se fosse um palestino na Cisjordânia ou em Gaza'? E, distintamente da maior parte dos israelenses - que supunham inocentemente que os palestinos ficariam contentes com a ocupação israelense, porque Israel iria trazer a eles um padrão de vida melhor e, talvez, um melhor sistema legal - eu imediatamente imaginei o ódio, a frustração, a raiva o desespero dos palestinos. Então, comecei a defender uma solução de dois Estados. Naquele tempo, éramos poucos. Na verdade, podíamos realizar a nossa assembléia nacional dentro de uma cabine telefônica".

Foi imediatamente rotulado de "traidor". Ele fala com um sorriso: "Tomo isto como um elogio. Um traidor é aquele que muda aos olhos daqueles que não conseguem mudar, que não mudam e nem conseguem conceber uma mudança". Todos os grandes heróis judeus foram traidores no seu tempo, observa: "Jonatan e Michal traíram o seu pai Saul; Joab e os outros filhos de Zeruiah, o justo Absalom, Ammon, Adonijah, filho de Hagit - foram todos eles traidores, e o pior traidor de todos foi o próprio rei David, aquele de que ainda cantamos a canção, 'David rei de Israel vive, vive, ainda vive".

E Oz traiu de fato a visão do seu pai. Ele dizia ao seu filho que ele estava louco, assim mesmo. diz Oz. "Tínhamos acirradas discussões sobre paz e sobre os palestinos. O meu pai jamais reconheceu os palestinos como uma entidade nacional em separado. Ele achava que existe uma nação pan-árabe, e que essa nação tem um território 150 vezes maior que o território de Israel. 'Eles já têm bastante espaço. O que querem de nós’? “Ele simplificava muito esta questão", retrucava Oz ao seu pai: “Ao homem que está se afogando e se agarra a uma tábua, é permitido - por todas as normas da justiça natural, objetiva e universal - abrir espaço para si na tábua, mesmo que ele tenha que empurrar os outros um pouco para o lado. Mesmo que os outros, sentados naquela tábua, só lhe deixem como alternativa a força. Mas ele não tem direito de empurrar os outros daquela tábua para o mar".

O que o seu pai pensaria se pudesse ouvi-lo agora? "Ele ficaria muito bravo comigo - sem dúvida". Seria isto, em parte, uma revolta edipiana? Oz se irrita um pouco. "Existe um elemento de revolta edipiane em qualquer relacionamento entre filho e pai, incluindo a relação entre mim e o meu pai".

Mas há uma convicção que ele herdou do seu pai e sempre manteve. Ambos viam a religião como uma "poeira arcaica", um legado bizarro de uma era mais primitiva e menos racional. Então, quando os colonos começaram a tomar a Cisjordânia como parte de um plano messiânico de resgatar toda a Terra de Israel bíblica, Oz viu isso com horror e como um esforço de "empurrar o judaísmo para trás na História, de volta para o Livro de Josué, aos dias dos Juízes, ao extremismo do tribalismo fanático, brutal e fechado".
A tragédia é - acredita - que essas pessoas acham que são motivadas pelo que há de melhor na natureza humana. Ele escreveu no romance Caixa Preta: "Não é nem o egoísmo nem a baixeza, nem a crueldade na nossa natureza que nos transforma numa espécie que se auto-destrói. Aniquilamo-nos a nós mesmos (e logo iremos varrer a nossa espécie inteira) precisamente por causa dos nossos sentimentos "mais altos', por causa da doença teológica". Os colonos acreditam que estão nos salvando, mesmo quando estão arrastando a sua tribo para o inferno.

"O povo judeu tem um grande talento para a auto-destruição", sorri. "Talvez sejamos os campeões mundiais em auto-destruição... [causada por] nossa demanda característica pela perfeição, pela totalidade, por espremer nosso ideal até suas últimas migalhas ou morrer tentando, por não abrir concessões para a realidade, por não nos dispor a tolerar um grilhão romano por algum tempo de forma a sobreviver e ficar no país. Isto foi um erro crasso". Da mesma forma, os colonos agora buscam tomar toda a Terra de Israel histórica - e ao fazê-lo estão impedindo uma solução de dois Estados e podem condenar Israel a uma morte lenta.
Então, de repente, ele começa a avançar. "Mas, deixe-me compartilhar algumas boas novas, porque normalmente você só recebe más notícias do Oriente Médio, na imprensa e na mídia. A boa nova é que a vasta maioria dos judeus israelenses e a vasta maioria dos árabes palestinos sabem, no coração dos seus corações, que no final das contas haverá uma solução de dois Estados. Eles o sabem. Estão felizes com isso? Não. Dançarão nas ruas quando a solução de dois Estados for implementada? Não. Mas eles sabem... Faltam lideranças firmes nos dois lados. Mas a solução de dois Estados continua sendo a única saída".

Há 40 anos ele já vem oferecendo esta visão bonita e racional e eu, com alegria, venho repetindo as suas linhas, Mas não há dias em que ele perde a esperança? Não há dias em que concorda com Boaz, um dos personagens do seu livro 'A Caixa Preta', que diz: "No final os judeus acabarão [com os palestinos] ou eles se acabarão entre si e nada sobrará neste país exceto a Bíblia e o Alcorão, as raposas e as ruínas queimadas"?
Ele sorri. "Gosto muito do Boaz - o considero um bom personagem. Mas não partilho do seu pessimismo. Acho que uma solução de dois Estados é inevitável. Os judeus israelenses não irão para nenhum lugar. Somos 5,5 milhões e não iremos para lugar nenhum - não temos para onde ir. Os árabes palestinos tampouco irão pra qualquer lugar - eles não têm para onde ir. Não podemos nos transformar numa família feliz, porque não formamos uma família com os palestinos, nem felizes. Somos duas famílias infelizes. Então, há que se transformar a casa em dois apartamentos, para duas famílias. Não existe nenhuma opção a isto. Pode levar muito tempo ou ser rápido. Mas acontecerá".

Aí a nossa discussão sobre seu esforço apaixonado para salvar seu país retorna, obliquamente, para a questão da sua mãe, que ele não conseguiu salvar. Ele acredita que a resposta ao conflito - a solução temperamental - está com o escritor que ela amou, mesmo quando suas dores de cabeça a atormentavam e sua vontade de viver se esvaía. "Ao final de uma tragédia de Shakespeare, o palco está atulhado de cadáveres e talvez haja alguma justiça flutuando lá no alto. Uma tragédia de Chekhov, por outro lado, termina com todos decepcionados, amargurados, corações partidos, desapontados, absolutamente despedaçados, mas ainda vivos. E eu desejo uma solução Chekoviana e não Shakespeariana, para a tragédia israelense-palestina".
II. Operação Chumbo Fundido 

Hoje, Oz vive à beira do deserto do Neguev, que ele parece espelhar. Sua maneira é seca e lenta e vasta, e ele parece examinar a História de uma perspectiva de milhares de anos.
Como é que Oz é capaz de entender as escuras ambiguidades - e a necessidade de concessões - tão diferentemente de tantos de seus concidadãos, como os que elegeram Netanyahu e Lieberman? "Vejam, eu levanto a cada manhã muito cedo. Tomo uma xícara de café, sento-me à mesa, e começo imaginar: 'E se eu fosse ele? E se eu fosse ela?'. É assim que ganho a vida: imaginando o outro. Eu imagino o outro. É a minha profissão. E meu hobby, também: Sento em cafés na rua e quando nada mais tenho a fazer, enquanto espero alguém..." Ele olha ao redor do café onde estamos sentados e sorri: "Olho para os outros fregueses do café e tento imaginar a vida deles, o que eles são de verdade, o que estarão eles falando sobre aquela outra mesa no fundo?"

"É isto o que faço. Para mim, é fácil. É bem mais difícil para pessoas comuns que não são escritores, que não são romancistas, imaginar o outro em tempos de guerra, ou mesmo em tempos de uma crise familiar. Nisto, eu faço parte de uma minoria. A maior parte das pessoas não liga". 

Ele repete, num tom de desdém: "A maioria não liga". E acrescenta rápido, “isto não se aplica só a Israel. É motivado pela raiva, meu amigo. Raiva. A guerra gera raiva e ódio e ressentimento. Muito pouca gente na Inglaterra daria qualquer atenção às vítimas dos bombardeios de Dresden e Leipzig. Pouquíssimas pessoas em Londres, ao fim da Segunda Guerrra Mundial, dariam qualquer atenção ao sofrimento de civis inocentes naquelas cidades".

Mas será que mesmo ele não teria falhado em manter para si os altos padrões que definiu? No início ele apoiou a Operação Chumbo Fundido - o bombardeio de Gaza que matou mais de 1.400 pessoas, 40% dos quais eram crianças - mesmo dizendo saber, por experiência própria, que isto faria com que as crianças de Gaza tenham sonhos lunáticos de vingança. Eu lhe perguntei a razão. "O Hamas atirou uns 10 mil foguetes no sul de Israel, região onde eu vivo. E não acho que nenhum país do mundo iria simplesmente virar a outra face para isto. Não acho que a Inglaterra iria se conter caso alguém fizesse chover 10 mil foguetes sobre Yorkshire. Então, uma resposta israelense era compreensível e aceitável, a meu ver. A dimensão da resposta, a desproporção desta resposta, é algo que eu critico com severidade".

Mas use o seu próprio teste - de ver o outro lado, de empatizar. Usando a mesma lógica, pode-se perguntar de uma perspectiva palestina: que país poderia tolerar ser violentamente ocupado por 40 anos, então ter parte do seu território bloqueado e parcialmente privado de comida, apenas para puni-lo pela forma como votou numa eleição democrática?
De forma não usual, ele muda de assunto, e tenta culpar alguém. "Bem, vou lhe dizer algo sobre bloqueio. Fronteiras de Gaza com o Egito. Não havia razão para os egípcios não fornecerem a Gaza tudo que eles precisam. E existe muito pouca razão para que Israel forneça a Gaza tudo que precisa. Afinal, Gaza está atirando em Israel... Se o Egito e o resto do mundo árabe desejassem investir em Gaza, reconstruir Gaza e incrementar o padrão de vida em Gaza, eles poderiam tê-lo feito". 
Mas Oz sabe que Israel põe uma grande pressão sobre o Egito - especialmente através dos EUA - para não fazê-lo. Os próprios serviços de segurança de Israel disseram que o Hamas extenderia o cessar-fogo se Israel concordasse em aliviar o bloqueio. Isto não ter sido melhor? Não haveria menos crianças sonhando em atirar foguetes em Tel Aviv? 

Oz – pela primeira vez na entrevista - parece incerto: "Não sei. Acho que tentamos. Se nos esforçamos o suficiente, não sei. Não sei mesmo". Olha para baixo e depois para o lado.
Aí ele fala mais confiantemente. "Acho que nos últimos dias antes do ataque israelense a Gaza, o disparo de foguetes aumentou para cerca de 80 foguetes por dia. E as nossas baixas, nossas casas destruídas, e o sofrimento de quase um milhão de israelenses que tinham que viver em abrigos subterrâneos. Nenhum governo poderia tolerar isto. Nenhum governo podia simplesmente oferecer a outra face".

Mas o lado palestino estava sofrendo de forma ainda mais horrível - usando a sua lógica. Eles, também, têm o direito de revidar e bombardear. "Eu pude entender e justificar, e justifiquei, uma resposta militar israelense proporcional, medida, limitada e com objetivos definidos cautelosamente - não uma guerra em grande escala. Veja... já disse muitas vezes e o direi de novo: - Sou um peacenik, não um pacifista. Sim, os pacifistas acreditam que o maior de todos os males do mundo é a guerra. Eu acho que o grande mal não é a guerra mas a agressão, e a agressão às vezes tem que ser bloqueada pela força. Aí está a diferença entre um peacenik e um pacifista". 

O que quis dizer é que esta guerra, especificamente, foi uma idéia ruim. Como que para me acalmar, ele fala: "Eu acho que deve haver uma ampla investigação judicial sobre as ocorrências da guerra de Gaza. O judiciário israelense é independente e forte, e penso que deve haver um inquérito amplo e abrangente". 
Diz então que Israel deve, "em princípio", negociar com o Hamas. "Se o Hamas estiver disposto a falar com Israel, Israel deve conversar direto com o Hamas. Sem dúvida alguma. É claro que devemos fazê-lo. É difícil haver compromissos com o Hamas porque o Hamas sustenta que Israel nem deve existir. Eu não poderia propor como compromisso que Israel exista nas 2ªs, 4ªs e 5ªs feiras. Mas, do momento em que o Hamas mostre a mínima inclinação para reconhecer Israel, eu falaria com eles - com certeza o faria".

IV. Otimista
Aí ele me surpreende com uma grande previsão. Eu pergunto: você poderia imaginar Bibi Netanyahu apertando as mãos de Ismail Haniyeh, líder do Hamas, no gramado da Casa Branca, com um Obama sorrindo entre eles? Ele ilumina um sorriso. "Sim, certamente. Com certeza". E acrescenta: "Não jure que Netanyahu não irá aprovar uma solução de dois Estados. Já vimos quase todos os primeiros-ministros de direita fazerem concessões surpreendentes para a paz. Begin entregou o Sinai pela paz com o Egito; Sharon evacuou a Faixa de Gaza; o próprio Netanyahu fez concessões em Hebron. Eu não consigo ler a mente dele e estou certo de que nem ele mesmo sabe o que irá fazer. Mas bem pode ser que a realidade seja mais forte do que ele, que ele sinta o anseio da maioria do povo israelense e nos surpreenda". 

Oz e Netanyahu vieram de origens parecidas: revisionistas de direita num país socialista, que demandavam políticas rígidas, mais duras e cruéis. O senhor poderia imaginar um mundo em que fosse ficar como ele? "Sim, sim”, diz. “Bem, a questão é: - será que ele poderá acabar ficando como eu”?
Entrevista para JOHANN HARI – originao publicado no The Independent em 19|03|09 e traduzido por MOISÉS STORCH para o PAZ AGORA|BR.
AMÓS OZ é veterano ativista e um dos fundadores do PAZ AGORA. É um dos mais importantes escritores israelenses da atualidade. Veja uma coletânea dos seus livros e artigos ao longo da última década

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