ESPECIAL PARA RAÍZES
Entrevista com Avner Cardoso
Por: David Salgado
Avner Cardoso é uma pessoa muito interessante e especial. Interessante porque vocês hão de convir que sua experiência de vida é muito peculiar e tem aspectos interessantíssimos no tocante ao mundo dos Anussim. Especial, porque ele acreditou e teve coragem de ir em busca de suas raízes e chegou onde ele está hoje – estudando numa Ieshivá na cidade de Jerusalém em Israel após passar o processo oficial de conversão através do Rabinato de Israel. Ele foi até o fim.
Avner Cardoso tem hoje 45 anos é solteiro, nascido em Moçambique em uma família portuguesa. Em sua família, são comuns nomes como Rodrigues, Alves, Paula, Meira, Cardoso, Sousa, Trabulo, Diniz.
Não precisei dizer-lhe, que nossa entrevista é especificamente sobre sua ascendência Marrana... e subitamente fui interrompido; com uma voz tranqüila mas firme ao mesmo tempo, Avner disse:
- "Bem, primeiramente eu detesto esta palavra que não usamos entre nós e às vezes os cristãos nos insultavam desta maneira, quando descobriam que nós éramos... (marranos)".
Fiquei quieto e deixei que ele continuasse.
- "Quando eu era criança estava brincando com outras crianças de bolinha de gude e ganhei uma partida ficando com uma certa quantidade de bolinhas. Então o rapaz que perdeu, que era da região transmontana, enfiou um ponta pé no lugar onde estavam as bolinhas de gude e me insultou desta maneira... (Marrano). Minha avó que viu tudo da janela me chamou imediatamente e me disse: 'da próxima vez que te chamarem desta maneira você parte logo pra cima, porque esse é um insulto muito grave pra nossa gente'. Mas nunca me explicaram exatamente o que isso significava de fato, nem minha mãe, nem minha avó e tão pouco minha bisavó. Mas tarde percebi que na minha família se praticavam coisas que não se faziam nas outras, um conjunto de hábitos, costumes, maneiras de ser e de fazer certas coisas, que não haviam nas outras casas, mas apenas na minha e em outras bem próximas. Comecei a perceber que não se comiam certas coisas, que se faziam certas rezas, certas bênçãos, só então um dia me disseram: tu és judeu, tu não podes fazer qualquer coisa! Pronto! Mas nunca me explicaram o que é um judeu, simplesmente disseram que eu era judeu. Eu sabia que haviam outros tipos de judeus, mas não sabia distinguir entre uma coisa e outra".
Esse curioso episódio ocorreu quando Avner tinha por volta dos seis anos de idade. Bem, imaginem a confusão que deve ter ficado a cabecinha dessa criança. Avner parecia querer contar mais, percebi sua ânsia em querer falar e então lhe perguntei... – Parece que você ainda tem coisa a dizer sobre isso, quer contar mais alguma coisa?
- "Uma vez minha mãe me disse pra não comer disso (apontando para certa direção), foi quando os meninos me deram pra comer uma guloseima, e então houve uma discussão na qual minha mãe me puxou pelas orelhas e me disse que nós éramos judeus, que não poderíamos comer qualquer coisa, se comêssemos essas coisas proibidas não ganharíamos o céu, não teríamos direito ao paraíso, era um segredo terrível que não podia se saber fora da família, porque havia o risco das pessoas serem mortas, nominalmente serem mortas vivas numa fogueira. Isso era uma clara alusão a Inquisição, nessa altura eu não sabia o que era, foi a partir desse momento, um momento muito marcante, um momento de terror e que marcou profundamente a minha vida, que escutei pela primeira vez que eu era um judeu. Eu tinha aproximadamente seis anos de idade. Eu não tinha coragem de perguntar a minha mãe o que era judeu. Enfim, toda a educação relacionada com o judaísmo que tínhamos, era feita de maneira muito sutil. As pessoas diziam que isso eram apenas tradições de família, tem que cumprir, tem que fazer e não davam mais explicação. Também quanto a maneira como se falava, com sutileza, havia um certo medo, um certo receio; quando iam falar dessas coisas, as pessoas olhavam ao redor antes de falar ou fechavam as janelas antes de tudo".
A partir desse momento percebi que estava diante de uma história especial. Suas lembranças eram ainda vivas e suas memórias eram marcantes. Comecei então a perguntar sobre que costumes são esses que eram praticados com tanto cuidado e receio por sua família.
– "Ora bem, os costumes são muitos e variados. Do lado da minha mãe era bastante forte, ela acendia luzes a sexta-feira. Era uma candeia com azeite e linho, a bisavó sabia fazer rezas, sabia matar galinhas a nossa maneira, sabia fazer o pão santo, que é o pão ázimo, sabia preparar a água separada para fazer a massa do pão santo, sabia fazer uma porção de coisas. Da parte do meu pai não é tão claro apenas um primo admitiu ser de origem judaica. Sua família no Natal, que é uma festa que não tem conexão nenhuma com o judaísmo, apresenta um pudim que é um verdadeiro "charosset", e não sabem explicar porque, ou seja, na família do meu pai estão completamente assimilados, mas continua haver um resquício de uma memória judaica".
Perguntei-lhe, então, se havia o costume de circuncidar as crianças na sua família.
- "A circuncisão das crianças está rodeado de algum mistério que ninguém sabe quem circuncida, elas aparecem circuncidadas e ninguém sabe quem é, e isso é um segredo absoluto, inclusive conheço pessoas da zona de Foz Côa que são todos circuncidados e ninguém sabe quem fez. A circuncisão eu não sei quando se fazia, só que era muito cedo. Tenho uma relação de muita confiança com minha mãe, fiz essa pergunta objetivamente a minha avó e a ela e a resposta foi o completo silêncio, dando a entender que era para não fazer tocar mais no assunto. É por isso que eu acredito que a minha bisavó é quem fez a minha circuncisão".
Tu, Avner Cardoso fostes circuncidado? Perguntei-lhe.
– "Aparentemente sim, que quando eu fui fazer a circuncisão, já aqui em Israel, eles perguntaram: "e então tu já sofreste algum tipo de corte?" O Mohel chamou todos os mohalim do hospital para ver o que se passava. Eu não tinha pele interna, pura e simplesmente, e a pela externa cobria metade da glande. Ninguém sabe explicar que tipo de circuncisão é esta, mas que ela existe é um fato. Perto da terra da minha avó tem uma aldeia em que todas as crianças são circuncidadas, até hoje".
Aonde é a terra da tua Avó?
– "A terra da minha avó é Torres de Moncorvo e penso que tem uma aldeia chamada Boticas onde observam esse hábito".
A partir desse momento percebi que Avner já estava mais à vontade. Resolvi, portanto, pegar uma relação de costumes que tinha comigo e então disse-lhe: Avner, vamos fazer assim, eu te digo um costume que dizem praticam os Anussim e você me diz se conhece ou não tal costume, ok?
- "Ok".
Depois do nascimento de um bebê, a mãe deveria mudar de roupa diariamente durante trinta dias, você conhece ou ouviu falar desse costume?
– "Não. Lembro apenas que antes do nascimento de uma criança, geralmente, colocava-se arruda e alho debaixo do travesseiro e a mulher ficava sempre acompanhada de outra mulher, isto quando havia a tradição de nascer em casa".
E depois do nascimento algum costume?
– "Não, depois do nascimento não há nenhum costume particular".
Existia um período de impureza das mulheres, algum costume nesses dias?
– "Eu sabia que minha avó ia ao "batismo" todos os meses, mas eu nunca soube o que era de fato isso. Eu sei que minha mãe também tomava uns banhos especiais em casa, enchia a banheira com água mais fria, fechava a porta com a chave e quando isso acontecia, nós já sabíamos que era alguma coisa diferente, e para não incomodar, não aborrecíamos e era como um tabu só entre as mulheres".
Costumes de casamentos. Os noivos e seus padrinhos deveriam jejuar no dia do casamento.
– "Eu sei que existem pessoas que fazem isso, mas não são da minha família não; essas são pessoas da terra da minha avó que tem o costume de jejuar no dia do casamento".
Na cerimônia as mãos dos noivos eram envoltas por um pano branco enquanto fazia-se uma oração. Existe esse costume, como era exatamente?
– "Eu tenho uma idéia de ver isso quando era criança, a mulher estende o ante-braço com a mão virada pra cima, e o homem põe o ante-braço e segura o pulso da mulher enquanto a mulher segura o pulso do homem e o lenço é envolto dessa maneira... Sei que há quem não concorde com esse costume e por isso devem haver outros hábitos paralelos. Eu vi pelo menos isso uma vez quando era criança, tenho uma leve idéia. O casamento é feito em casa, sei que para nós o casamento é feito em casa, depois fazem o casamento no registro civil ou na igreja".
Você se lembra de outros costumes de casamento?
– "Há uma hora em que os noivos estão separados de todos e depois se juntam. Antes da refeição em comum com a família, os noivos estão separados, acho que era assim, eu era muito criança, pouco me lembro".
É comum a prática do jejum? Quando jejuavam?
– "Ora bem, quando morre alguém jejua-se. A partir dos dez anos as crianças começam a jejuar o Kipur, ou seja o Dia Grande, como a gente chama, o Dia do Grande Perdão".
Qual é a data desse Dia do Grande Perdão?
– "Isso só os velhos é que sabem. Geralmente ocorre no outono, durante muito tempo a gente dependia dos velhos, a partir do momento que morreu a minha bisavó, ninguém mais sabia exatamente quando ocorria. As pessoas calculavam mais ou menos dez dias da lua nova no calendário normal, da lua de outubro, mais ou menos, mas a gente não sabia ao certo, mas pra não perder o hábito algumas pessoas continuavam a fazer assim, somente as velhas que sabiam olhar os céus e determinar o dia exato".
Tu Avner, já fez esse jejum alguma vez.
– "Sim, sempre".
Como era esse dia, que detalhes você pode descrever?
– "Desde criança as pessoas reuniam-se em casa, fechavam-se as cortinas..."
Percebi nesse momento que Avner estava bastante emocionado, as muitas lembranças de sua vida familiar estavam sendo expostas e isso com certeza não era nada fácil, trazer a tona todos esses resquícios de tempos remotos que foram guardados com tanto cuidado de uma hora pra outra, fez com que Avner não suporta-se e então chorou, um choro contido mas que traduzia muito do que não conseguia dizer. Deixei ele bem à vontade... finalmente ele disse:
- "Custa-me falar sobre isso". – Mas assim mesmo prosseguiu. - "Havia todo um conjunto de rezas que mal se escutava, as velhas estavam no centro de tudo, as orações eram quase um zumbido que agente não percebia o que era, ficávamos o dia todo em jejum praticamente de um por do sol ao outro, e haviam várias sessões de rezas e às vezes descansavam, às vezes falavam de episódios antigos da família, coisa assim, depois da morte da minha bisavó... dispersaram-se".
Há quanto tempo sua bisavó faleceu?
– "Cerca de quinze anos atrás".
Todos na família faziam esse jejum?
– "Meu irmão nunca fez esse jejum, a minha mãe às vezes fazia. Depois havia um grupo de tias e primos que faziam, e claro aos poucos esse grupo foi minguando, vão se perdendo, foram se casando com pessoas que não são da Nação, é uma tristeza".
Avner, é sabido que a festa de Purim, mais conhecida entre os Anussim pelo nome da heróica rainha Ester, é uma das festas do calendário hebraico que mais foi preservada através dos séculos justamente pelo caráter singular de Ester ter escondido, a princípio, sua identidade judaica no palácio do Rei Achashverosh, e ter conseguido mais tarde quando a revelou, salvar o seu povo da total destruição. Assim como Ester, os Anussim esconderam sua identidade judaica. Que detalhes você pode nos contar a respeito da festa de Ester?
- "Muito bem, uma pergunta que me fez lembrar algo interessante, quase me esqueço de contar. As mulheres realizávamos uma espécie de concurso da Meguilat Ester. Diferente de hoje em dia, onde tem concurso para escolher a Rainha Ester e até o rei Achasverosh, os Anussim tinham o costume de fazer um concurso diferente. Era o concurso de Meguilat Ester. O objetivo era saber quem conseguia dizer toda a Meguilat Ester de cor em português. É isso, eles memorizavam a Meguila todinha... Aos tantos do mês tal, na cidade tal, no reino do rei Assuero, não sei quantos tentaram matar os judeus, e havia o Mardoqueu e a Ester, e não sei o que... e assim recitavam a história todinha, eu é que não lembro de nada".
A tua bisavó sempre reunia essas pessoas na casa dela?
– "Por vezes era na casa de uns tios, variava de ano pra ano porque as pessoas não queriam fazer no mesmo lugar com medo, que essa reunião chamava a atenção, era um pouco assim".
Avner, vamos conversar um pouco sobre Alimentação – Ovos com mancha de sangue eram jogados fora?
– "Com certeza, qualquer traço de sangue, coagulo ou mancha quando fossem encontrados no ovo ou na carne, estes eram jogados fora. A carne de porco, assim fui habituado e assim me ensinaram, era só imundice, sujeira e eu acabei ficando com certa repulsa até mesmo ao cheiro da carne de porco. Não me lembro de misturar leite com carne, por exemplo cozinhava-se o bacalhau com natas e olha que existe em Portugal o costume de comer bife com natas ou bife com leite para a carne ficar mais macia, mas não comíamos assim e a justificativa era que era muito indigesto e fazia mal. Nós não comíamos fora de casa, sempre comíamos da comida da mãe e da avó. Até mesmo quando tínhamos um cozinheiro africano, minha mãe era quem fazia tudo, ele só ajudava, lavava a louça, mas ela nunca deixou ele fazer toda a comida. E mesmo mais tarde quando ele já estava acostumado com a nossa família, ele não fazia a comida sozinho".
Avner, já ouviste falar de um lugar onde esconder o prato de comida.
- "Ora bem, em Trás os Montes eu sei da existência de um tipo de mesa que debaixo de cada acento tem uma gaveta. Nunca soube pra que isso servia, mas agora já sei. Eu sei que em certas ocasiões, tu metes o prato dentro da gaveta e a fecha. Eu nunca fiz isso mas sei da existência desse mobiliário, essa mesa especial existe em Trás-os-Montes em Moçambique nunca vi isso. São detalhes pequenos que se as pessoas não perguntam a gente nunca se lembra, ainda bem que tu perguntaste".
Achei aquilo incrível, uma mobília, mais exatamente uma mesa de jantar com gavetas embaixo para esconder o prato de comida quando os Anussim estavam, por exemplo, fazendo o Seder de Pessach e alguém batia a porta... poderia ser um delator da Inquisição!!! E essa mesa existi hoje, em pleno século XXI! Impressionante!
Devido à sua dupla personalidade, os Anussim tinham que transparecer fieis católicos e freqüentar as igrejas sempre. Ao entrar numa igreja o que se recita?
- "Ora bem, isso eu sei de cor, nem precisas dizer; 'Eu não adoro nem o pau nem a pedra mas ao grande Deus que tudo governa'. Curiosamente, pra você ver como são as coisas, na Ieshiva esta semana, um rabino explicou alguma coisa sobre isso, que na parashat Haazinu tem um passuk que se refere ao pau e a pedra. E ele então disse que o pau tem ligação com a cruz católica e a pedra com a pedra que está na Caaba em Meca. Duas formas de idolatrias: uma explícita, a cruz, que está nas igrejas e nas casas dos católicos e outra encoberta, a pedra, como a que está na mesquita sagrada de Caaba em Meca que é na realidade um meteorito que dizem que fica suspenso no ar e que é possuidora de um espírito e portanto, uma forma sutil de idolatria embora eles digam que não. Assim, essa semana descobri que a frase que aprendi a dizer desde criança antes de entrar na igreja, um lugar de tamanha idolatria e por isso proibido para nós, é uma frase que faz muito mais sentido agora".
Minha lista de costumes e atitudes tinha chegado ao fim. Mesmo assim algo me dizia que Avner ainda tinha muita coisa pra dizer e contar e então fui em frente. Perguntei-lhe, então, o seguinte: Como é possível conciliar todos esses costumes e tradições de sua família com as mitzvot do judaísmo moderno? Ou seria tudo uma coisa só?
- "Não, não, não é tudo uma coisa só, isso eu tenho certeza. No judaísmo há todo um conjunto de coisas que eu aprendi com o tempo; alimentação, postura ao rezar, liturgia própria, modos e outros. Eu tive tempo mais do que suficiente para ir me adaptando, cerca de vinte anos. Curiosamente, dou o exemplo do 'Bircat mein shalosh' – A bênção das três espécies, entre aspas. Era uma certa bênção que eu sabia de memória, e hoje eu sei, que é praticamente a tradução literal do hebraico. Ainda hoje eu tenho uma imensa dificuldade em ler aquilo em hebraico, por isso mesmo, pronuncio só com os lábios pra não dar muito nas vistas...e é assim, porque vou ler 'Bircat mein shalosh' em hebraico se eu sei em português e de memória desde criança? Outro exemplo, o 'Mode Ani' pela manhã, é coisa automática para mim, de manhã cedo antes mesmo de me levantar eu já digo de cor: 'Bendito sejais Senhor, com prazer e alegria, por nos tirar das trevas escuras da noite e por nos dar à luz do dia'. Eu não faço o 'Mode Ani' em hebraico, por que deveria"?
Avner, estás arrependido de ter feito essa busca, esse retorno às suas origens?
- "De maneira alguma, e faria tudo de novo de olhos vendados se fosse preciso".
E por que a conversão ortodoxa e não uma liberal?
- "Primeiro por que as pessoas e a sinagoga que fui conhecendo, eram todos ortodoxos. Depois por que essa não é a tendência entre os Anussim, isso porque, o liberalismo ou reformismo tem alguma vertente de seita por um lado e uma aparência de algo incompleto pelo outro. O que a gente queria mesmo é voltar às origens, não queríamos voltar a um sucedâneo por que sucedâneo já éramos nós, em resumo o liberalismo é como retornar para algo que não éramos, ou seja pra lugar nenhum".
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Magal
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