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Abraham Joshua Heschel : Um nome para não esquecer






Abraham Joshua Heschel : Um nome para não esquecer
Sheila Sacks

A história do rabino que esteve lado a lado com Martin Luther King, na década de 60, na luta pelos direitos civis dos negros da América. Em dezembro, mês de seu falecimento, é tempo de lembrar a sua iluminada trajetória.
Bradando por justiça e liberdade, os anos 60 adentraram pelo hall da história de uma maneira atrevida e rebelde que sacudiu as estruturas do establishment social e cultural do planeta. Arrebanhando intelectuais, universitários, artistas, profissionais liberais, religiosos, políticos e ativistas em geral, a luta pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos incendiou mentes e corações em todo o continente americano. Somando-se a tal desafio, outras batalhas titânicas foram travadas naquela década conturbada, com coragem e lucidez, por uma geração iluminada. Como a façanha de dizer não, em determinado momento, à guerra do Vietnã, e participar dos esforços para erradicar, por completo, no seio da Igreja Católica, um conceito milenar e preconceituoso contra os judeus. O que foi feito no Concílio Vaticano II, através da Encíclica Nostra Aetate.
Em todos esses combates onde o entusiasmo, a tenacidade e a perseverança se apresentavam como condições básicas para qualquer militância atingir o seu objetivo, um homem do livro e da fé destacou-se com a sua presença indelével, despertando encantamento e admiração naqueles que dele se acercavam. De família ortodoxa e natural da Polônia, Abraham Joshua Heschel (1907-1972) era filósofo, professor, escritor e rabino. Em 1963, quando se encontrou pela primeira vez com o reverendo Martin Luther King, Heschel já tinha escrito a maioria de seus livros, dentre eles os quatro mais conhecidos: “Os Profetas”, “O Shabat” , “O Homem não está Só” e ”Deus em Busca do Homem”.
Black Zion
No ensaio escrito por Susannah Heschel sobre o seu pai e incluído no livro “Black Zion: African-American Religious Encounters with Judaism” (2000), que trata das relações culturais e religiosas dos negros norte-americanos com o Judaísmo, são realçadas a afeição, a amizade e a convergência de idéias que uniam esses dois gigantes de seu tempo. “ Ambos, Heschel e King, buscavam as imagens do Êxodus para despertar as suas audiências para o grave problema do racismo”, conta Susannah. Foi o que aconteceu na conferência Nacional de Religião e Raça realizada em Chicago, em janeiro de 1963, que reuniu judeus e cristãos em torno de temas como a discriminação e o preconceito. Na ocasião, Heschel iniciou o seu discurso comparando o dia presente à história bíblica de Moisés e o Faraó: “O resultado daquela primeira assembléia não se completou” rememorou Heschel, “porque o Faraó ainda não capitulou”. E continuou: “Na realidade foi até mais fácil para as crianças de Israel atravessarem o Mar Vermelho do que está sendo para os nossos irmãos afro-americanos cruzarem certos campus universitários.”
Convidado por John F. Kennedy para um encontro na Casa Branca, Heschel fez um apelo para que o presidente exigisse das lideranças espirituais do país um maior engajamento pessoal nas questões dos Direitos Civis: “Eu proponho que o presidente dos Estados Unidos declare estado de emergência moral”, enfatizou o rabino, “já que nós permaneceremos em falta com Deus enquanto a humilhação aos negros persistir”.
Em março de 1965, Heschel e King caminham juntos na histórica marcha realizada no estado de Alabama (depois de duas tentativas abortadas pelas forças policiais), um dos mais segregacionistas do país. Durante cinco dias eles percorrem os 71 quilômetros que separam a cidade de Selma à capital Montgomery, à frente de uma multidão que chega a 25 mil pessoas, para defender o sagrado direito do voto da população negra. “O contrário do bem não é o mal, e sim a indiferença”, argumenta Heschel. “Em uma sociedade livre, alguns são culpados, mas todos são responsáveis.”
Vietnã
Naquele mesmo ano Heschel funda o movimento antibelicista “Clergy and Laymen Concerned About Vietnam” - CALCAV, que congrega religiosos e leigos que se opõem à guerra no Sudeste Asiático. Com a parceria do teólogo cristão John C. Bennett e do pastor luterano Richard Neuhaus, o grupo discursa em universidades, sinagogas e igrejas, clamando pelo fim do conflito no Vietnã. “Se hoje é difícil parar com a guerra, amanhã será muito mais difícil “, protesta Heshel.
Em janeiro de 1967, ao final do primeiro encontro nacional da organização em Washington, e na presença dos 2.500 representantes de 47 estados, Heschel lê o documento que resume o pensamento e a disposição dos participantes: “Chega um tempo em que o silêncio soa como traição. Esse tempo está entre nós e tem relação com o Vietnã”, adverte. A filha de Heschel conta da angústia do pai acerca do problema: “Freqüentemente eu o via no meio da noite, incapaz de dormir. A guerra o afligia cruelmente”, lembra.
A mensagem e a mobilização do CALCAV sensibiliza Martin Luther King. Ele ingressa oficialmente no movimento e, em Nova York, faz um pronunciamento emocionado ao lado de Heschel. Assumindo publicamente o seu engajamento, King louva a missão dos companheiros, dizendo-se profundamente solidário com os objetivos e o trabalho realizado: “Estou aqui esta noite porque a minha consciência não me deu outra escolha. É tempo de romper o silêncio... mesmo não sendo fácil assumir a tarefa de se opor a uma política de governo, especialmente em tempo de guerra”, discursa King.
Vaticano II
Heschel também exibe uma atuação ímpar em uma outra missão singular: preparar um texto sobre os tópicos antijudaicos na liturgia católica, a pedido da instituição judaica norte-americana American Jewish Commitee, e ir a Roma para se encontrar com o Cardeal Augustin Bea, que supervisionava o texto da Encíclica Nostra Aetate acerca das relações da Igreja com as outras religiões. Entre 1962 e 1965, período em que se realiza o Conselho Vaticano II, Heschel participa de várias audiências de trabalho com o Papa Paulo VI, ajudando-o a pavimentar o caminho das novas relações entre judeus e católicos. Em uma de suas correspondências enviadas ao Vaticano, Heschel é contundente em relação ao parágrafo sobre a conversão: “A mensagem que considera os judeus candidatos à conversão e que proclama que o destino do Judaísmo é o desaparecimento, soa abominável para os judeus de todo o mundo. E como tenho seguidamente declarado para as lideranças do Vaticano”, exemplifica Heshel, “se eu me deparar com a alternativa da conversão ou a morte, eu escolho Auschwitz, sem problema”.
Anos depois, em 1971, quando Heschel viaja à Itália para uma série de conferências, ele revê Paulo VI em uma audiência reservada. Em seu diário, Heschel deixa registrado: “Quando o papa me viu ele sorriu alegremente, com a face radiante. Apertou a minha mão com ambas as mãos, gesto que se repetiu algumas vezes no transcorrer do encontro. Contou que havia lido os meus livros e que os mesmos eram muito espirituais e belos, e que os católicos deveriam lê-los. Disse ainda para que eu continuasse a escrever mais livros, acrescentando que tinha conhecimento da importante influência que meus escritos exerciam sobre os jovens.”
Profetas como exemplo
O estudo da vida dos profetas bíblicos de Israel fez com que Heschel partilhasse o seu tempo espiritual com os necessitados e injustiçados. Um dia antes de sua morte, ocorrida em 23 de dezembro de 1972, em meio ao frio e a neve ele permaneceu de pé durante horas, em frente a uma prisão, aguardando a liberação de um companheiro ativista, um sacerdote católico. Heschel tinha 65 anos.
Presente ao sepultamento, Coretta Scott King, viúva de Luther King, lembrou a afeição e a amizade que uniram os dois líderes, até o assassinato do marido, em 4 de abril de 1968. Naquele ano, dez dias antes da fatídica ocorrência, o reverendo esteve em Nova York, a convite de Heschel, para falar a um grupo de rabinos.
Nascido em Varsóvia, Heschel estudou em uma Yeshiva (seminário rabínico). Obteve o grau de Doutor em Filosofia na Universidade de Berlim e completou sua formação religiosa em Hochschule, a academia alemã de altos estudos judaicos. Em 1940, junto com outros intelectuais judeus que fugiam do horror nazista, encontrou refúgio nos Estados Unidos. Seus esforços, porém, para resgatar seus familiares da Polônia foram infrutíferos. Perdeu a mãe viúva e as três irmãs no Holocausto (nos campos de morte de Treblinka e de Auschwitz). Nunca mais retornou à Polônia e à Alemanha, pois, segundo ele, “ cada pedra, cada árvore, suscitavam lembranças”.
Professor de Ética Judaica e Misticismo por mais de 25 anos no Jewish Theological Seminary of América, em Nova York, em 1967 ele visita Israel e ao retornar aos Estados Unidos publica o livro “Israel: an echo of Eternity”, onde emocionado confessa que não tinha idéia do quão intensamente sentia-se ligado a sua ancestralidade.
Santificar o tempo
No conjunto de sua obra encontramos amplos temas recorrentes que tratam do significado da fé, da divindade das ações e da sacralidade do tempo. Ele afirmava que qualquer ação é um teste porque é nas ações que o homem toma consciência de seu poder de destruir ou de criar alegria. “O coração se revela no que o homem realiza, no que ele faz” (é dele a frase: Quando eu era jovem costumava admirar as pessoas inteligentes, com a idade passei a admirar as pessoas de bom coração).
Heschel também separa a piedade da fé, sentimentos muitas vezes confundidos em sua similitude, argumentando que existem atos de piedade sem fé, já que esta pressupõe uma ligação com Deus. Quanto ao aspecto sagrado do tempo, o sábado ou shabat seria a materialização do santificado, pois este dia representa a eternidade dentro do tempo. Para o filósofo, a fascinação do homem pela grandiosidade do espaço e pelos objetos que pode ver e tocar, aos quais intitula de realidade, o afasta da verdadeira conquista espiritual que só o entendimento da sublimidade do tempo é capaz de proporcionar. Heshel é categórico: “O resultado desta nossa consciência dos objetos é nossa cegueira a toda a realidade que, de início, não se identifica como um objeto. E essa cegueira se mostra óbvia em toda a nossa compreensão de tempo, que não sendo um objeto palpável, parece carecer de realidade.”

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