Revista Época - Edição 436 - 25/09/2006
Mundo
O que há com o islã?
A declaração do papa Bento XVI e o apoio da União Européia mostram que o Ocidente não está mais disposto a acalmar os radicais muçulmanos. E já discute se dentro do próprio islamismo os extremistas não teriam derrotado os moderados
Marcelo Musa Cavallari
O Papa Bento XVI estava de volta ao tipo de lugar em que se sente mais à vontade: uma sala de aula. Durante a visita que fez a sua Alemanha natal, o papa deu uma Aula Magna na Universidade de Regensburg. Relembrando os tempos em que lecionava na Universidade de Bonn, onde era professor de Teologia Católica e onde também havia um curso de Teologia Protestante, Bento XVI escolheu falar da relação entre fé e razão. Para ilustrar seu ponto, citou um velho livro medieval que narra os debates entre o imperador bizantino Manuel II Paleólogo e um persa sobre cristianismo e islã. "Mostre-me o que Maomé trouxe de novo e só se encontrarão coisas más e desumanas, como a ordem de espalhar pela espada a fé que ele pregava", disse o imperador na citação lembrada pelo papa. Para Bento XVI, o importante na citação não era sua condenação ao islamismo.
O ponto a ser ressaltado era o argumento do imperador contra a violência. Agir contra a razão - convencer alguém a aderir a uma idéia à força, por exemplo - era contrário à natureza de Deus.
DOMÍNIO DA FÉ Refugiado afegão reza sob a lua crescente, símbolo do islã. A religião rege todos os aspectos da vida dos muçulmanos | REAÇÃO Papa Bento XVI. Ele não pediu perdão após citação considerada ofensiva pelos muçulmanos |
Mas foi como uma ofensa que a fala de Bento XVI foi tomada por boa parte do mundo muçulmano. Governos de países islâmicos protestaram formalmente contra as declarações do papa. Organizações islâmicas pacíficas exigiram pedidos de desculpas. Nas ruas, protestos davam vazão à ira gerada pelo comentário. Grupos radicais muçulmanos ameaçaram atacar igrejas, o Vaticano e o próprio papa. Bento XVI lamentou que sua aula tivesse sido interpretada de maneira a ser tomada como ofensa pelos muçulmanos. Mas não se retratou. "A aula era, e é, um convite ao diálogo", disse o papa.
Ao longo de toda a sua carreira na Igreja, Joseph Ratzinger, o atual papa Bento XVI, mostrou ser um teólogo de primeira linha e um intelectual sofisticado. É uma ingenuidade imaginar que ele não tenha previsto que a escolha da citação fosse gerar polêmica. Deve-se entender o que o papa disse no contexto de sua abordagem do problema islâmico. Bento XVI fazia em Regensburg uma defesa da razão. Defendia-a contra o relativismo intelectual do mundo moderno e contra as tendências anti-racionais dentro da Igreja Católica. Ao estender o debate ao islã, Bento XVI retomou uma linha de pensamento que tem marcado sua ação: a crença em que o islã é incompatível com a Europa. A tradição cristã da Europa, herdeira do pensamento filosófico grego, é que dá fundamento às mais importantes características européias. O islã, com sua idéia de que Deus é tão transcendente que sua liberdade não pode ser limitada por nada, nem pela razão que ele próprio deu ao homem, é incompatível com a visão ocidental sobre Deus e o homem, diz o papa.
Desde que assumiu o cargo, Ratzinger vem dizendo que a expansão do islã e a violência do radicalismo islâmico são um problema sério para a Europa e para o Ocidente. O papa é talvez o mais preeminente defensor dessa tese, mas está longe de ser o único. Pouco depois que começaram os protestos pela aula de Regensburg, a União Européia (UE) divulgou uma nota oficial. Nela, reconhecia o direito do papa de usar sua liberdade de expressão. Principalmente dentro de uma universidade, um preceito defendido unanimemente em países democráticos.
O documento da UE marca uma mudança de comportamento. Desde o 11 de setembro, todas as manifestações ocidentais oficiais têm sido no sentido de separar o islã do radicalismo islâmico e de defender as suscetibilidades das populações muçulmanas. O caso das caricaturas de Maomé publicadas em um jornal dinamarquês no ano passado ilustra isso. Boa parte dos países, mas principalmente os Estados Unidos, condenou a decisão do jornal de desenhar o profeta do islã. Só isso já era uma blasfêmia, pois o islã proíbe imagens de Maomé. Ainda mais, de maneira irônica. Diante das violentas manifestações, considerou-se a publicação das charges uma ofensa aos sentimentos religiosos dos muçulmanos e uma provocação gratuita. Mesmo depois que o jornal lembrou que imagens cristãs e judaicas já haviam sido alvo de caricatura inúmeras vezes no Ocidente e ninguém destruiu embaixadas ou queimou bandeiras nas ruas.
Desta vez, a mensagem da UE para os muçulmanos é bem diferente. A Europa democrática convive com a liberdade de expressão e não está disposta a abrir mão dela, diz a nota. E os muçulmanos vão ter de se acostumar com isso. Depois de anos propondo o diálogo e vendo o radicalismo islâmico florescer, o Ocidente parece ter perdido a paciência. Faz sentido? O islã é, por si só, uma ameaça ao Ocidente e aos valores ocidentais de democracia, liberdade de expressão e direitos individuais? Ou são os radicais que deturpam o verdadeiro islã?
continuação (pág.2)
RADICAL Osama Bin Laden e seu fuzil AK-47, no Afeganistão, em 1998: seu objetivo final é derrubar regimes "infiéis" nos países árabes |
Na Europa, a opinião de que o problema é o próprio islã não se restringe mais às figuras da extrema direita. Aderiram a ela algumas pessoas que ocupam o s centro da cena cultural européia. O escritor britânico Martin Amis, por exemplo. Num longo artigo publicado no jornal britânico Observer na véspera do quinto aniversário do 11 de setembro, ele se dedica, com especial virulência, a afirmar que existe uma incompatibilidade do islã com o que considera louvável no mundo ocidental. E traça um cenário especialmente pessimista. Segundo ele, a análise mais corrente, em que se baseia até mesmo a política americana para o Oriente Médio, é que o mundo muçulmano está em crise de identidade. O aumento da violência religiosa dos últimos anos seria, segundo essa análise, provocado pela disputa entre os que querem modernizar as sociedades islâmicas e os radicais muçulmanos. Por isso, o que estaria em curso não seria um choque de civilizações entre islã e Ocidente, mas sim uma guerra civil dentro do próprio islã. "Bem, a guerra civil parece ter acabado", escreve Amis. "E o radicalismo islâmico venceu." O perdedor, o islã moderado, é enganosamente bem representado nas páginas de opinião dos grandes jornais do mundo, diz Amis. "Em todos os outros lugares ele parece estar calado."
Para gente como Amis, não se trata de saber se Maomé pregava a violência ou se o Corão incita os jovens muçulmanos a se tornar terroristas suicidas. Citar exemplos de versículos do Corão em que o profeta fala da paz e condena a violência não basta, diz Amis. Porque, de alguma maneira, "o radicalismo islâmico, em termos de força capaz de moldar o mundo, é basicamente tudo o que se vê". De que a violência perpetrada pelo radicalismo islâmico assusta o mundo pós-11 de setembro não há mais dúvida. Também é fato que a quase totalidade dos ataques terroristas na última década está ligada ao radicalismo islâmico. Mas, para algumas vozes que começam a se erguer na Europa, a suposta incompatibilidade entre islã e Ocidente teria raízes mais profundas.
"Os muçulmanos não querem nossa liberdade. Eles não sabem o que é isso. São escravos de Deus. Não compreendem conceitos como liberdade de escolha e independência", diz a jornalista Oriana Fallaci, morta na sexta-feira 15 de câncer, em sua última entrevista internacional (leia a íntegra na sequencia da matéria). Polêmica ao longo de toda sua carreira, Fallaci vendeu milhões de cópias dos três livros que escreveu sobre a ameaça que enxergava na crescente comunidade islâmica européia. Em menos de três décadas, relata Fallaci, a Europa se tornou o lar de 20 milhões de muçulmanos. Com uma taxa de natalidade consideravelmente maior que a européia, essa enorme comunidade tende a se tornar maioria num futuro tão próximo quanto, ao menos para Fallaci, assustador. A Europa caminha para se tornar uma Eurábia, diz Fallaci. E, conseqüentemente, perder sua identidade.
Há, porém, estudiosos ocidentais que enxergam no Corão outras coisas além do incentivo ao radicalismo ou a preconceitos machistas. "Um estudo sério do islã", diz a escritora britânica Karen Armstrong, "mostra que por 1.400 anos os ideais do Corão contribuíram para o bem-estar espiritual dos muçulmanos". Armstrong foi, durante sete anos, uma freira católica. Hoje é escritora e professora e se considera uma freelance espiritual. Desde seu livro Uma História de Deus, Armstrong se dedica a tentar entender, e divulgar, os elementos que poderiam unir, em vez de dividir, as três grandes religiões monoteístas do mundo: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.
Ao longo de sua vida, narra Armstrong em Maomé, uma Biografia do Profeta, Maomé "transformou inteiramente as condições de vida de seu povo, resgatando-o da violência estéril e da desintegração e dando-lhe nova e orgulhosa identidade. Agora estavam preparados para fundar a própria cultura, e os ensinamentos de Maomé liberaram tamanha energia que, num prazo de cem anos, o império árabe se estenderia de Gibraltar ao Himalaia ". Maomé foi civilizador, chefe político, comandante militar e fundador de uma religião. Tudo ao mesmo tempo. Ele nasceu numa Península Arábica ainda politeísta e dividida em tribos. Em 622, durante um mês de retiro espiritual que já fazia parte da religião politeísta dos árabes, Maomé recebeu de um anjo, segundo a tradição muçulmana, a ordem de recitar. Aquilo que recitou eram os ensinamentos da nova religião. Corão, nome que significa recitação, seria o título do livro que, depois da morte de Maomé, compilaria seus ensinamentos. E sob esse título se tornaria o livro sagrado dos muçulmanos.
O Corão não narra uma história. Ele apenas compila os ditos de Maomé. Mas ao longo do livro fica-se conhecendo parte da história de sua vida. Depois de ter recebido a mensagem de Deus, Maomé tinha por missão transmitir o estrito monoteísmo aos árabes. Para livrar a Península Arábica do paganismo, teve de unificar todas as tribos. Foi perseguido e teve de fugir de Meca para Medina. É esse episódio, conhecido como Hégira, que marca o início da contagem do tempo no calendário muçulmano. De Medina, Maomé dá início à série de campanhas militares que culminará com a tomada de Meca. Finalmente, todos os líderes tribais se submetem a Maomé. Ele purifica de todos os resquícios pagãos o santuário da Caaba, hoje o local mais sagrado do islã, na Arábia Saudita.
Continuação (pág.3)
Depois de sua morte, Maomé foi sucedido por Abu Bakr, seu amigo e sogro. Estava já impregnado da mentalidade islâmica de que o conjunto dos fiéis deveria estar todo unido sob o mesmo chefe. Aquilo que foi a marca da ação temporal de Maomé seria depois a dos califas, nome que se deu aos sucessores de Maomé na liderança da comunidade muçulmana. Assim como Maomé submetera toda a Península Arábica a sua versão do monoteísmo, os califas submeteriam o resto do mundo. A expansão árabe ganhou terreno sobre o território dos impérios Persa e Bizantino.
As disputas sucessórias dariam origem à grande divisão entre os muçulmanos. Parte deles considerou que o herdeiro de Maomé tinha de ser um membro de sua família. Ali, genro do profeta, seria o escolhido. Em meio à disputa, o filho de Ali, Hussein, foi morto no Iraque. Essa morte marca a origem dos xiitas, partidários de Ali, grupo que representa cerca de 14% dos muçulmanos no mundo e só é majoritário no Irã, no Iraque e no Líbano. O restante são os sunitas. A unidade política do mundo muçulmano foi rompida. O território conquistado era grande demais para que fosse diferente. Mas a idéia de unidade de todos os fiéis sempre permaneceu como ideal. A última encarnação dessa idéia foi o Império Otomano, cuja queda, depois da Primeira Guerra Mundial, está na raiz da conturbada história do mundo islâmico no século XX.
FANATISMO Homens-bomba do grupo Hezbollah no Líbano (à esq.) e protestos de muçulmanos na Índia: para alguns analistas, a origem da intolerância islâmica com o Ocidente está no próprio Corão |
Os turcos otomanos chegaram a dominar um império que se estendia do Marrocos ao Iraque e incluía parte considerável da Europa. Ao começar a Primeira Guerra Mundial, em 1914, eles haviam perdido terras importantes, como o Egito, além de praticamente todas as possessões européias. Antes invencíveis, foram surpreendidos pelo avanço dos impérios europeus - primeiro a França de Napoleão, depois a Inglaterra, depois a Áustria-Hungria. A defasagem entre o poderio ocidental e o otomano levou um grupo de militares turcos, no início do século XX, a um programa radical de modernização. A idéia era aprender as técnicas ocidentais e colocá-las a serviço de um país secularizado. O islã ficaria relegado à esfera privada. Só depois da derrota turca na Primeira Guerra Mundial o programa foi posto em prática, por Kemal Ataturk. Ele acabou com a monarquia e criou a república da Turquia. O resto do território otomano foi dividido entre as potências européias vencedoras. Os países se tornaram independentes ao longo do século XX. Inspirado pelo modelo turco, e especialmente pelo fascismo e pelo nazismo europeus, surgiu o nacionalismo árabe. A idéia era implantar a nacionalidade como fator de integração e formar uma república árabe laica. O modelo foi vitorioso no Egito, com Gamal Abdel Nasser, na Síria, com Hafez Assad, e no Iraque, com uma série de ditadores militares, até chegar a Saddam Hussein.
Nesse mesmo ambiente em que cresceu o nacionalismo árabe surgiu a opção que acabaria se transformando no radicalismo islâmico. Em 1928, no Egito, o professor de escola primária Hassan al-Banna fundou a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, ou Irmandade Muçulmana. O diagnóstico de Banna era que a decadência do mundo islâmico não se devia à falta de progresso técnico ou modernidade, mas à decadência da religião. A solução era retornar ao islã primordial, descrito no Corão. Não era uma idéia nova. Periodicamente movimentos de retorno a uma pureza original geraram renovações no islã. Uma delas é o wahabismo do século XVIII, que, pregando uma obediência estrita ao Corão, levou à formação da Arábia Saudita depois da Primeira Guerra Mundial.
Projeto de reforma moral e pessoal antes de mais nada, a Irmandade Muçulmana foi radicalmente modificada pela obra do egípcio Sayyd Qutb. O fundador da Irmandade Muçulmana, Banna, havia sido assassinado quando Qutb escreveu os livros Justiça Social no Islã e Marcos. Neles, descrevia como deveria ser organizada uma sociedade islâmica, em que os preceitos do Corão, a sharia, teriam de regular toda a vida humana. Surgia a base ideológica do radicalismo islâmico. O conceito de jihad, ou guerra santa, ganhava as cores radicais com que é hoje conhecido. Por ironia, Qutb desenvolveu suas teorias durante um período de estudos nos Estados Unidos. Em 1954, de volta ao Egito, ele foi preso, implicado numa tentativa de matar o presidente secular Nasser. Foi executado em 1966. Suas idéias são a base intelectual de quase todos os grupos radicais islâmicos atuais, como o Hamas e a Al Qaeda.
Continuação (pág.4)
O CAMINHO DO FUTURO? O rei Mohammed VI, do Marrocos, tenta criar uma alternativa ao secularismo árabe e aos regimes fundamentalistas islâmicos |
Dois fatos históricos criaram as condições para que essas idéias radicais se propagassem. O primeiro foi a fundação do Estado de Israel, em 1948. Combatido primeiramente pelos nacionalistas árabes, o Estado judaico passou a ser visto, ao longo das décadas e das guerras regionais, como um representante da cultura ocidental no Oriente Médio, apoiado e financiado pelos EUA. E como um ocupante infiel de Jerusalém, a terceira cidade mais sagrada para o mundo islâmico.
O segundo foi a Revolução Iraniana, liderada pelo aiatolá Ruholah Khomeini, em 1979. Ele derrubou a ditadura do xá Reza Pahlevi com o apoio de socialistas e comunistas. Sua revolução, no princípio, era vista com simpatia pela Europa. Mas, em 1982, o regime endureceu. Criou-se um Estado xiita "puro", que patrocinava grupos radicais na região e enfrentou o então poderoso Iraque (sunita e socialista) numa guerra que matou 1 milhão de pessoas.
Mais que o Ocidente, a ideologia radical islâmica tem como principais alvos os governos laicos ou pouco religiosos. Mesmo o arquiterrorista Osama Bin Laden, escolhido pelo presidente americano George W. Bush como inimigo número um dos EUA, não tem o Ocidente como seu inimigo prioritário. Seu principal objetivo político é a derrubada da família real saudita. Para Bin Laden, os governantes sauditas traíram o islã com sua política de aproximar-se do Ocidente e enriquecer-se com o petróleo. Os EUA só se tornaram inimigos de Bin Laden por seu envolvimento no Oriente Médio, derivado do interesse estratégico ligado ao petróleo, e pela ligação com Israel.
A violência do terrorismo suicida faz com que o mundo islâmico pareça sem saída. Aos Estados autoritários, como a monarquia saudita ou a república iraniana, parece opor-se apenas uma violenta militância islâmica. Há uma solução turca, que tenta impor o modelo ocidental e reservar a prática do islã à esfera privada. Mas ela obriga a uma mudança no coração do islã que as fontes da religião não autorizam. Não se pode ser islâmico sem uma dimensão política e social da religião. O Corão prevê que toda a ordem da vida seja determinada pelos ensinamentos de Maomé.
Há, porém, outras leituras do Corão. Segundo o místico ortodoxo sudanês Mahmoud Muhammad Taha, o Corão foi revelado a Maomé em duas fases. A primeira foi em Meca, onde o profeta e seus seguidores viveram 13 anos como minoria religiosa. Essa mensagem seria de paz e liberdade, coexistência e igualdade de direitos, independentemente de sexo, classe social, raça ou religião. Seria o islã original. A segunda fase foi em Medina, que Maomé governou. Ali, os versos de compulsão da fé pela espada teriam prevalecido. Seria um islã adaptado às necessidade do século VII. No século XX, dizia Taha, os muçulmanos deveriam voltar sua atenção à mensagem de Meca. Mas Taha foi perseguido e enforcado pelo governo sudanês em 1985. Sua visão de islã ficou restrita a poucos fiéis.
É por isso que a figura do rei do Marrocos, Mohammed VI, tem tanta importância. Mais novo representante de uma dinastia que está no poder há 350 anos e que reivindica uma descendência direta de Maomé, Mohammed VI está provocando uma tranqüila revolução em seu país. "Como Comandante dos Fiéis, não há a menor possibilidade de que combata a religião", diz Mohammed, aludindo a um dos títulos a que sua condição de rei do Marrocos lhe garante. "Eu combato a ignorância e a violência." Ele afirma que está tudo no Corão. No poder desde 1999, o jovem rei busca o sentido mais profundo das ordens de Maomé. E se preocupa mais em obedecer ao que seria a intenção do profeta que com as interpretações que se cristalizaram ao longo dos séculos. Assim, interpreta os ditos do profeta que descrevem a submissão da mulher ao marido não como indicação de que a mulher deve valer menos que homem.
A intenção do profeta, diz o rei, era defender a família organizada e estável. Dessa visão decorreu uma reforma na legislação de família que, entre outros avanços impensáveis para o resto do mundo árabe, tirou do marido o direito de se divorciar da mulher apenas com uma declaração unilateral. Além disso, a mulher também pode entrar na Justiça pedindo divórcio. As mudanças implantadas por Mohammed VI têm agradado tanto à porção mais laica da sociedade quanto aos partidos islâmicos. Mas são muito recentes. Ainda não dá para dizer se terão futuro no Marrocos. Muito menos se esse descendente de Maomé vai conseguir um dia reinventar o islã.
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14 séculos de História
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A reação no Brasil
O discurso do papa Bento XVI incomodou também os muçulmanos do país
LÍDER O xeque Abdune, principal autoridade islâmica no Brasil |
As palavras do papa Bento XVI também irritaram a comunidade islâmica no Brasil. "Uma pessoa como ele deveria ter mais cautela, e mais informações, sobre essas questões. A frase citada foi dita num período de guerra. Espero que ele peça desculpas", disse o xeque Ali Abdune, de 42 anos, presidente do Conselho Superior dos Teólogos e Assuntos Islâmicos no Brasil e principal representante da comunidade muçulmana no país.
O xeque Abdune representa também o mufti do Líbano. O mufti é a maior autoridade religiosa de um país islâmico. O xeque Abdune é a única pessoa no Brasil autorizada a emitir fatwas, os decretos islâmicos sobre questões cotidianas. Abaixo dele estão cerca de 40 xeques, quase todos estrangeiros. Os brasileiros estudaram em universidades islâmicas em países como a Arábia Saudita, a Síria e o Egito.
Nascido em Mato Grosso do Sul, criado no Líbano e formado em Medina, na Arábia, o xeque Abdune fala com sotaque e voz pausada. Por meio de gestos suaves, expressa posições firmes. Ele não atribui os atentados em Nova York, Madri e Londres à ação de islâmicos. Acredita num complô ocidental. "Nada foi confirmado. A cada ano as coisas vão clareando e se vê que os próprios Estados Unidos têm uma mão nessa questão", afirma.
O xeque Salah Sleiman, de 42 anos, responsável pela Mesquita Brasil, em São Paulo, tem a mesma opinião. "O Corão condena atos contra inocentes. Mas ainda existem dúvidas. Mesmo nos Estados Unidos há uma divisão sobre essa questão e não existe certeza absoluta de que o responsável pelo atentado ao World Trade Center tenha sido Bin Laden", diz.
Se o discurso político dos líderes parece defender os radicais, os costumes da maioria dos muçulmanos brasileiros são bastante liberais. É raro ver alguma mulher com o xador, o véu sobre a cabeça, e nem todos fazem as cinco orações diárias. De acordo com as lideranças, aproximadamente 1,5 milhão de brasileiros professam o islamismo. O último censo, porém, aponta um número bem menor - 27.233. Eles se reúnem em cerca de cem mesquitas, concentradas em São Paulo. São, na maioria, descendentes de sírios e libaneses.
Ivan Padilla |
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Entrevista - "Conversas sobre a mesquita"
Uma das maiores críticas do islã, a jornalista italiana Oriana Fallaci concedeu entrevista ao editor que lançou o polêmico concurso de caricaturas de Maomé
A jornalista Oriana Fallaci morreu aos 77 anos, no dia 15 de setembro, de câncer. Destemida e inflexível, foi uma correspondente de guerra e entrevistadora extraordinariamente corajosa, tornando-se uma das mais conhecidas repórteres do mundo. Embora tenha ficado reclusa nos últimos anos, concedeu uma entrevista poucos meses antes de morrer ao jornalista dinamarquês Flemming Rose. Rose era o editor de cultura do jornal Jyllands-Posten. E lançou um concurso de caricaturas do profeta Maomé. As vencedoras foram publicadas em 2005 e geraram, alguns meses depois, violentas reações em comunidades muçulmanas do mundo todo. Rose lançou o concurso como um desafio. Percebia uma autocensura entre os profissionais europeus, que concediam aos símbolos religiosos islâmicos um respeito que não achavam obrigatório em relação a símbolos cristãos ou judaicos. Assustado com a reação ao desafio, Rose fez uma série de entrevistas com personalidades que pensaram sobre o islã, que ÉPOCA publicará nas próximas edições. A de Oriana Fallaci inaugura a série.
DESAFIO Flemming Rose, que lançou o concurso de charges, entrevistou intelectuais sobre o islã |
Na conversa, Rose e Fallaci discutiram as visões controversas que ela expressou em três livros sobre o islã e a cultura ocidental: A Raiva e o Orgulho, A Força da Razão, e, mais recentemente, O Apocalipse . A seguir, o texto que Rose produziu a partir da conversa com Oriana Fallaci:
Fallaci demonstrou uma coragem incomum pela primeira vez aos 14 anos, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Ela se juntou à resistência em sua cidade natal, Florença, onde seu pai havia sido capturado e torturado. Nas décadas seguintes, fez seu nome como a mais importante correspondente de guerra, cobrindo conflitos no Camboja, Vietnã, Oriente Médio e América Latina. Ficou gravemente ferida em 1968, quando estava cobrindo o massacre, pelo Exército mexicano, de estudantes em protesto.
Ao longo de sua carreira, Fallaci entrevistou, como ela mesma chamou, "os f... da p... estúpidos que mandam em nossas vidas". Conhecida por suas perguntas incansáveis e pelo estilo confrontador, suas entrevistas eram uma espécie de teatro em que os entrevistados eram provocados de forma a fazer declarações imprudentes.
Após os atentados do 11 de setembro, ela voltou-se contra o que chamou de "Eurábia", um conceito emprestado do historiador Bat Ye'or, que descreve uma tentativa do mundo muçulmano de "colonizar" a Europa. Os novos livros de Fallaci sobre o islã levaram a censuras por parte dos intelectuais mais importantes, que antes aclamavam o que ela escrevia.
Encontrei-me com ela, magra e enfraquecida pelo câncer, em seu apartamento em Nova York no dia 19 de abril.
Flemming Rose - A esquerda européia não é mais, digamos assim, uma admiradora sua, mas houve um tempo em que você era praticamente um ícone e liderava a crítica contra a Guerra do Vietnã.
Oriana Fallaci - Não. Isso não é verdade. Uma anarquista como eu não poderia jamais ser um ícone para essas pessoas, que lá no fundo são bolcheviques. Eu não pertenço a ninguém. Vou contar uma história. Em 1967, fui para Saigon, no sul do Vietnã, e escrevi do front algumas reportagens muito críticas. Os comunistas ficaram tão felizes com elas que me convidaram para ir a Hanói, no Vietnã do Norte, porque acharam que eu estava do lado deles. Enquanto estava com eles, experimentei o regime mais stalinista, fascista, que eu já vi, e escrevi uma reportagem ainda mais crítica sobre o Vietnã do Norte. Eles ficaram bravos e tentaram me desacreditar. O lado maravilhoso da liberdade do indivíduo é que ele não pode ser controlado. Pessoas como eu proclamam a verdade quando a encontram. Algumas vezes ela favorece a esquerda, outras vezes a direita. Ambos começam a detestar você quando percebem que não podem colar suas etiquetas.
Rose - Você se encontrou com o papa Bento XVI no ano passado. Sobre o que vocês conversaram?
Fallaci - Foi um encontro entre espíritos livres. Eu, uma atéia declarada, fui sua primeira convidada particular depois de sua posse. Respeito isso. Eles percorreram um longo caminho. Tornaram-se mais liberais, ao contrário do islã. Confio em Ratzinger. É um grande pensador e é um homem que acredita na razão. Ele está defendendo os valores ocidentais quando diz que a Europa não gosta mais de si mesma. Isso é muito importante. Eu também me preocupo com o crescente ódio a si mesma que atormenta a Europa. Essa foi a premissa de nosso encontro. Ele chora pela Europa, repreende a Europa. Sob esse aspecto somos aliados. Ele faz isso de uma forma delicada e educada, enquanto eu o faço de forma selvagem.
''Estamos enfrentando
um novo fascismo na Europa, o fascismo islâmico''
Oriana Fallaci, jornalista
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Rose - Seu embate com o islã afastou muitos dos que a apoiavam. Qual a conexão que você vê entre seus escritos iniciais e esses livros recentes sobre o islã?
Fallaci - Em primeiro lugar, eu nunca vendi tantos livros como nos últimos quatro anos. Os três livros sobre o islã venderam mais de 5 milhões de exemplares na Itália. Segundo, estou fazendo agora exatamente o que eu fazia antes. Estamos enfrentando um novo fascismo na Europa, o fascismo islâmico. Eu não quero o profeta deles, seu Corão, sua burca, seu xador e suas cinco preces diárias. Eles podem ir para casa e praticar sua religião, obrigada, mas não a tragam para dentro da minha. Não quero abrir mão da minha liberdade. Os muçulmanos não querem a nossa liberdade. Eles não sabem o que é. São escravos de Deus. Não compreendem conceitos como liberdade de escolha e independência. Graças a meus pais e a uma longa tradição familiar, tive a sorte de ser criada na religião da liberdade. Quando você está lidando com fascistas, é preciso lutar contra eles. Ponto. Não sinto nada em especial em relação a essa situação. Em princípio, não é novidade, ela se liga a experiências anteriores da minha vida. Você não viu as coisas que eu vi quando era criança. Coisas como aquelas você jamais esquece. Viram uma cicatriz na alma.
Rose - O que você viu?
Fallaci - Vi o que é o fascismo, o nazismo, a tirania, a violência, a destruição, a tortura, o ataque a uma cultura. Liberdade, como ensinou Platão, é disciplina. Não é a liberdade para fazer qualquer coisa que você queira, ser descomedido. A liberdade requer sacrifício - é um dever, antes de tornar-se um direito. Não se deve confundir liberdade e licenciosidade. Se o fizermos, a perderemos. Sou anticlerical, e em nosso tempo isso quer dizer antiislâmica, porque o cristianismo tornou-se tão liberal que não exige nada de nós, mas o islã quer nos punir por não sermos islâmicos. Querem conquistar o mundo todo, é isso o que diz seu Mein Kampf (livro de Adolf Hitler que estabeleceu as bases da ideologia nazista), o Corão, e é estúpido não levar isso a sério. É o que querem. Toda essa conversa sobre islã moderado e radical, islã bom e mau, não faz sentido. Há somente um islã, e ele está no Corão.
Rose - O que no Corão preocupa você?
Fallaci - Que você deverá ser punido e morto se não for mulçumano. Que mulheres não podem liderar, podem ser discriminadas. Não podemos coexistir com esse tipo de gente. Não é possível um diálogo. É sobre isso que eu escrevi.
Rose - Você sofreu ameaças de morte e, nos últimos quatro anos, viveu sob a proteção do FBI. É pior que ser correspondente de guerra?
Fallaci - Sim. A guerra é um jogo justo. Você atira em mim, eu atiro em você. Mas isso é traição. Acontece pelas costas. Fui uma ótima correspondente de guerra. Provavelmente porque já havia estado em uma guerra de verdade antes, então eu não tinha medo - ou melhor, aprendi a controlar o medo, porque é claro que você tem medo, só um idiota não fica com medo, mas nunca entrei em pânico.
Fotos: Adress Latif/Reuter, Alessandra Benedetti/Stock Photos, Karin Sahib/AFP, Arq. Ed Globo, AP, AFP, Joseph Barrak/AFP, Sajjad Hussain/AFP, AFP, Claudio Rossi/ÉPOCA, Marty Lederhander/AP, AP, Fracesco Scauullo, AFP e reprodução |