Por quase um século, mulheres judias fugidas da Europa se prostituíram aqui
CAROS AMIGOS,
Peço a ajuda de vcs para divulgar este absurdo (para dizer o mínimo).
Abaixo uma boa resenha sobre o caso e um texto meu que relata todo o fato.
Obrigada
Beatriz
Revista Aventuras na História - edição 38 - outubro de 2006 - Ed.Abril
Polacas no Brasil
Por quase um século, mulheres judias fugidas da Europa se prostituíram aqui
FÁBIO VARSANO
Por quase um século, elas se prostituíram em ruas de grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Nova York. Judias, nascidas no Leste Europeu e conhecidas como "polacas", essas prostitutas eram pobres, quase sempre analfabetas e sem dote para um bom casamento.Saíram de seus países ameaçadas por ondas de anti-semitismo, sem perspectivas, e acabaram recrutadas por cafetões - muitos também judeus.
A história, que acaba de ser contada no livro Bertha, Sophia e Rachel, de Isabel Vincent, é estudada há anos pela historiadora Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro e autora de Baile de Máscaras.Segundo ela, o relato mais antigo da trajetória delas por aqui fala da chegada, em 1867, de 104 "meretrizes estrangeiras" ao porto do Rio - dessas, 67 ficaram e 37 seguiram para Argentina.
"No período, o mercado brasileiro era propício à prostituição, com a população masculina bem maior que a feminina", diz Beatriz. Na virada para o século 20, o chamado tráfico de escravas brancas virou debate mundial. O declínio ocorreu nos anos 1940. Judeus haviam sido exterminados pelo nazismo no Leste Europeu e os que sobreviveram eram imigrantes com outro perfil, o de refugiados. No Brasil, as zonas do meretrício do Mangue e da Lapa, no Rio, e do Bom Retiro, em São Paulo, foram extintas nessa época. A história delas por aqui foi esquecida. Primeiro porque não tinham sucessoras.
Depois porque sempre foram discriminadas - inclusive pela sociedade judaica brasileira da época, que não permitia a elas nem um enterro digno. A maior parte das polacas está enterrada em cemitérios construídos por associações que fundaram no Brasil, como o Cemitério Israelita de Inhaúma, no Rio. Expressões usadas pelas polacas judias deram origem a palavras hoje muito populares no Brasil. Quando suspeitavam que um cliente tinha doença venérea, diziam ein krenke ("doença", em iídiche), que acabou se transformando em "encrenca". E, quando a polícia dava incertas nos bordéis, elas gritavam sacana ("polícia") - que virou "sacanagem".
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No gueto brasileiro
Mal vistas na sociedade, as polacas não freqüentavam os mesmos lugares que seus conterrâneos e eram segregadas até no cemitério. Sem falar o novo idioma e vivendo no submundo de um país estrangeiro, restou a elas se fecharem em entidades próprias para manter sua cultura. No Brasil, a primeira foi a Associação Beneficente Funerária Israelita (ABFRI), no Rio, em 1906. Objetivos: criar uma sinagoga, adquirir um cemitério, dar educação aos filhos das associadas e prestar assistência a doentes e idosos. "Era uma prova de que as polacas estavam aqui há algum tempo, já tinham família e se preocupavam com a velhice", aponta Beatriz Kushnir, que pesquisou documentos de associações do Rio, São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York.
O zelo pela tradição é traço comum. Contratavam cantores para conduzir os serviços religiosos em suas sinagogas e seguiam os feriados judaicos. Entre elas, falavam em iídiche (mistura de hebraico e alemão, falada por judeus da Europa Oriental). A associação deixou de existir em 1968, por falta de recursos. As sócias ainda vivas estavam doentes ou muito idosas. As atas de reuniões obtidas por Beatriz revelam que, em seus 62 anos de existência, a entidade teve 1030 membros.
As polacas de São Paulo fundaram a Sociedade Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI) em 1924 e, quatro anos depois, inauguraram o Cemitério Chora Menino, no Butantã. Segundo o Departamento de Cemitérios da Prefeitura, até 1971 ocorreram ali 233 enterros, mas o número de integrantes da associação sepultados lá deve ser bem maior.
Na pesquisa, a historiadora encontrou o nome de 255 sócios da SFRBI. Homenagens em músicas e poemas.
De origem humilde, as polacas trabalhavam quase sempre no baixo meretrício - locais de prostituição freqüentados por quem tinha poucos recursos. Nos cabarés e bordéis de luxo, a soberania era das francesas, que exerciam na época grande fascínio no imaginário masculino.
Atentas a esse fato, algumas judias aprendiam palavras em francês para tentar melhorar de vida. Motorista de lotação e sambista, o cantor Moreira da Silva namorou por 18 anos uma polaca: a russa Estera Gladkowicer, que chegou ao Brasil com 20 anos em 1927, foi dona de bordel no Mangue e se matou em 68, ingerindo barbitúricos. Para ela, Moreira compôs Judia Rara: "A rosa não se compara / A essa judia rara / Criada no meu país / Rosa de amor sem espinhos / Diz que são meus seus carinhos / E eu sou um homem feliz".
As polacas também estão presentes na letra de Mestre-Sala dos Mares, homenagem de João Bosco e Aldir Blanc a João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata (1910): "Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas, jovens polacas e por batalhões de mulatas". Outra referência é o poema Balada do Mangue, de Vinícius de Moraes, publicado em 1946: "Glabras, glúteas caftinas/ Embebidas em jasmim/ Jogando cantos felizes/ Em perspectivas sem fim./ Cantais maternais hienas/ Canções de caftinizar/ Gordas polacas serenas/ Sempre prestes a chorar".
SAIBA MAIS
LIVROS
Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição - as polacas e suas associações de ajuda mútua ,Beatriz Kushnir, Imago, 1996 Com base em documentos e testemunhos, reconstitui a história das polacas e mostra como elas lutaram para manter as tradições judaicas.
Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930),Margareth Rago, Paz e Terra, 1991
Pesquisa sobre a vida cotidiana das prostitutas e suas relações com a sociedade paulistana no começo do século passado.
Jovens Polacas,Esther Largman, Rosa dos Tempos, 1993
Romance baseado em fatos reais que ganhou versão de musical no teatro. O Ciclo das Águas,Moacyr Scliar, Globo, 1975Novela do escritor gaúcho inspirada na questão do tráfico de escravas brancas e na participação dos judeus nessa atividade.
Quarta-feira, Agosto 30, 2006
Os perigos de um jornalista desinformado.
Os perigos de um jornalista desinformado.
Beatriz Kushnir1
Li, ontem (26/8/2006), espantada, no Caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, a resenha do livro "Bertha, Sophia e Rachel – a sociedade da verdade e o tráfico das polacas nas Américas" (Autor: Isabel Vincent. Tradução: Alexandre Martins. Editora: Relume Dumará. Quanto: R$ 39,90, 248 págs.).
O jornalista, autor da resenha, é editor das revistas "EntreLivros" e "História Viva", e autor de "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha). Oscar Pilagallo destacava que o "foco do livro é a inédita associação que as polacas criaram para enfrentar a rejeição da comunidade judaica".
Pena o prestigiado jornalista não ter se detido numa pesquisa básica para escrever sua crítica. Isto porque, sou autora do livro "Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição, as polacas e suas associações de ajuda mútua", fruto de minha dissertação de mestrado em História, na Universidade Federal Fluminense, defendida em 1994 e publicada pela Editora Imago em 1996.
Fui a primeira a localizar a Sociedade de Ajuda Mútua delas no RJ, trabalhando também como o material localizado das de SP, Santos, Buenos Aires e NY. No Rio, localizei descendentes das polacas e o contador da Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI).
No meu livro proponho que a análise deste fato possibilita compreender a densa problemática da construção de uma identidade judaica em seu conceito moderno. Este estudo não tem, portanto, como objeto a reflexão da prostituição e da sexualidade que absorveu médicos, juristas e policiais na virada do século XX nas principais capitais do país, seguindo uma tendência mundial de normatizar condutas e controlar o espaço público.
Busquei reconstituir como um determinado grupo, marginalizado na sua dupla condição de imigrante e de fora da lei, viabilizou mecanismos de auto-proteção que lhes permitiram romper a exclusão religiosa e social na qual os legisladores do país e os dirigentes das comunidades judaicas os colocaram. Assim, para além de percebê-los como vítimas sociais da miséria e dos processos migratórios, desejou-se perceber seus mecanismos de sobrevivência e de construção de uma identidade social tida como positiva.
Os homens e mulheres envolvidos na atividade do tráfico e no mercado da prostituição estrangeira, e que eram de origem judaica, obviamente não encontraram a possibilidade de construírem laços de solidariedade e sociabilidade com as comunidades judias nas cidades onde coexistiram. Foram percebidos sempre como transgressores sem caráter, estabelecendo, pela oposição de condutas, o lado bom e mau da comunidade. Algo talvez compreensível, vindo de imigrantes que fugiam de perseguições religiosas e queriam a todo custo construir uma imagem positiva na nova pátria imigrada. Entretanto, em um ponto estes dois lados da comunidade judaica se encontravam: a dura condição de estrangeiro lhes era comum.
Este mecanismo de separação gerou neste grupo excluído um interessante artifício de sobrevivência: a necessidade de organizar instituições – sociedades de ajuda mútua – que refizessem uma vida social e religiosa e lhes permitissem reconstituir uma identidade pelas práticas coletivas. E foi para encontrar tais traços que, desde o início, esta pesquisa buscou localizar fontes produzidas pelos homens e mulheres envolvidos nesta atividade e, assim, abandonar leituras de terceiros acerca de sua existência. É por isso que o livro tem como imagem central a de um baile de máscaras. Desejando apreender rostos e não rótulos, objetivou-se encontrar tais pessoas e suas histórias particulares, rompendo com as máscaras sociais previamente estabelecidas.
Na pesquisa foi possível encontrar o histórico de cinco sociedades fundadas por homens e mulheres judeus envolvidos com a prostituição: a do Rio de Janeiro – Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI) – fundada em outubro de 1906; a de São Paulo – Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI) – fundada em 1924; a de Santos – Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos – fundada em 1930; a de Buenos Aires – Sociedade de Ajuda Mútua Zwi Migdal – fundada em 1906; e a de Nova York – The New York Independent Benevolant Association – fundada em 1896. Entretanto, só as duas primeiras são objeto do texto, pois são delas os documentos originais examinados: atas, estatutos, livro-caixa, material iconográfico e depoimentos de funcionários e/ou descendentes.
A entidade carioca, dirigida ora por homens ora por mulheres, pode ser mais bem percebida como uma irmandade centralizada em poucas figuras que tentou sempre superar crises, dando a impressão de um eterno recomeço e reestruturação para levar a cabo seus objetivos. A idéia de irmandade pode ser vista em dois momentos: primeiro quando o grupo de mulheres que cuidava da assistência social se auto-intitula as irmãs do "Chesed shell emes" – ou da "Caridade de Verdade", aquela que não busca recompensa. E um segundo momento, quando a Primeira Irmã Superiora falece, em 1932. A materialização desta noção de irmandade encontra-se na lápide de Fanny Zusman, no cemitério fundado pela entidade carioca e que se localiza no bairro de Inhaúma (RJ), este é o primeiro cemitério judeu da cidade.
Em São Paulo, a comunidade judaica permitiu, por um lado, que as polacas fossem amparadas no Lar dos Velhos (asilo mantido pela comunidade no bairro de Vila Mariana), e não permitiu, por outro, a manutenção de suas identidades quando do translado dos corpos do Cemitério Israelita de Santana/Chora Menino para o Cemitério Israelita do Butantã.
Nos anos de 1970, após a desestruturação física da entidade paulista, com a velhice de seus membros, o cemitério da sociedade, em Santana/SP, foi desapropriado pela Prefeitura dado o seu estado de abandono. Os corpos não reclamados por parentes foram removidos para o cemitério israelita da cidade. Só em 27/2/2000, certamente pelos desdobramentos que a publicação de meu livro obteve, a Sociedade Cemitério Israelita Chevra Kadish, de SP, recolocou os nomes nas lápides vindas de Santana/Chora Menino, numa cerimônia que contou com a presença e a reza do Rabino Soibel.
Portanto, caro jornalista Oscar Pilagallo, teses dão muito prazer e trabalho aos seus autores. Um estudo como este, financiado pela CAPES, num Programa de Pós Graduação em História como o da Universidade Federal Fluminense, de grau máximo, não ficou nas prateleiras das bibliotecas. Ganhou as estantes das livrarias e inúmeras reportagens a época. O tema merecia uma pesquisa sua para elaborar a resenha. Até porque, ao que parece, indicações no livro recente "beberam" nas minhas reflexões.
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1 Beatriz Kushnir é graduada e Mestre em Historia Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), e Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autora de Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua [Editora Imago, 1996], e Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 [Editora Boitempo, 2004]. E organizadora de Perfis cruzados: trajetórias e militância política no Brasil [Editora Imago, 2002]. Desde abril de 2005, dirige o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro [Prefeitura do Rio/Secretaria das Culturas].