De acordo com o ensinamento cabalístico, a sabedoria da Kabbalah existia antes mesmo de o universo físico vir a existir. Quando o processo da criação aconteceu, a sabedoria foi dada pelo Criador para Adão no Jardim do Éden, que era realmente o paraíso — ou teria sido o paraíso se o processo da criação fosse completado e Adão e Eva não tivessem pecado. A respeito do pecado, a Kabbalah descreve em grandes detalhes o que aconteceu, tanto da perspectiva física quanto da espiritual. Por exemplo, quando Adão e Eva foram expulsos do Jardim, o Criador disse a eles: “Por terdes comido da árvore sobre a qual eu vos ordenei, ‘dela não comereis’, maldita seja a terra por vossa causa; do fruto do vosso trabalho comereis todos os dias de vossas vidas.”
Por um lado, a Kabbalah diz que isto de fato se refere a um evento da história humana: Adão e Eva eram pessoas reais que realmente comeram um fruto de uma árvore proibida. Ao mesmo tempo, é uma alegoria da descida da humanidade de um estado espiritual de existência para a vida de um ser mortal no mundo físico. Quando o Criador diz a Adão que ele terá que cultivar a terra, a Kabbalah entende que devemos mergulhar no mundo físico. Precisamos executar ação tangível para assegurar a sobrevivência e prosperidade, não somente de nossos corpos, mas também de nossas almas.
Abraão criou um portal
Os livros iniciais da Bíblia descrevem como o sistema espiritual da Kabbalah foi trazido à existência após a expulsão do Jardim do Éden. Este conceito de um sistema espiritual é fundamental, mas não se refere a nenhum tipo de circuito físico. Na verdade, no processo de viverem suas próprias vidas, os patriarcas e matriarcas bíblicos se tornaram os canais através dos quais podemos nos aproximar do Criador e formar uma conexão com Sua sabedoria e Seu amor.
Os kabbalistas dizem que o patriarca Abraão “abriu” as qualidades de misericórdia e bondade. Ele criou um portal, como uma linha de telefone aberta, que nos permite conectar com a sabedoria divina.
Para um Kabbalista, portanto, Abraão, Isaac, Jacob, Raquel e Lea não são personagens literários. Eles foram pessoas reais cujas vidas estão registradas na Bíblia por causa de suas realizações espirituais, porque representam qualidades e características pelas quais todos nós podemos aspirar, e porque eles criaram meios para obter a plenitude máxima. De fato,eles ainda estão disponíveis para nós como recursos de energia espiritual para lidar com os desafios e obstáculos de nossas vidas.
A través de oração, meditação, e simplesmente por viver de acordo com princípios cabalísticos, podemos manter uma linha aberta de comunicação com a dimensão espiritual da realidade à qual os kabbalistas se referem como os Mundos Superiores. Embora este conceito não seja fácil de compreender, ele é vital. Seu significado se tornará mais claro à medida que você ler este livro e explorar os grandes ensinamentos cabalísticos do passado.
O poder das letras
O primeiro texto cabalístico foi um livro pequeno chamado Sefer Ietsirá — em português, O Livro da Formação — composto por Abraão, o Patriarca, há aproximadamente quatro mil anos. O Livro da Formação apresenta urna explicação detalhada dos poderes místicos do alfabeto hebraico, cujas letras foram empregadas pelo Criador em muitas combinações diferentes para criar o universo físico. Da mesma maneira que a ciência moderna se refere aos átomos como os blocos energéticos de construção da realidade física, O Livro da Formação descreve as letras hebraicas como fundamento do sol, da lua e das estrelas. Até mesmo coisas intangíveis corno amor, misericórdia e tempo derivam das vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Cada letra tem uma energia específica e revela um aspecto particular do Criador.
As letras são vistas aqui conforme aparecem num rolo de Torá escrito meticulosarnente à mão. Cabalisticanente, esta é a forma autêntica do alfabeto. Uma inspeção cuidadosa revela que muitas das letras se desenvolveram a partir do desenho daquelas que vieram antes. Fm hebraico, a própria língua é do chamada de ivrit, um derivativo do verbo lavir, que an significa “transferir” ou “transportar”, e as letras são o veículo pelo qual a energia divina passa para o mundo físico.
A Kabbalah ensina que as letras são muito mais que símbolos visuais que correspondem a sons específicos. Como os elementos atômicos da tabela periódica, elas são configurações fundamentais de energia que formam o mundo. As propriedades e poderes de cada letra são tão diferentes quanto o hidrogênio do urânio, e cada uma tem seu benefício e uso específico. Vocalizar as letras, ou simplesmente olhar para elas, cria uma ressonância nos níveis mais profundos do nosso ser.
Uma série poderosa de seqüências de três letras conhecida como os 72 Nomes de Deus tem sido usada há séculos para a conexão com manifestações específicas de energia positiva, incluindo saúde, prosperidade, certeza e muitas outras. As letras hebraicas são um assunto muito farto. Elas mereceram ser o tema de diversos livros. A medida que você avança no estudo da Kabbalah, sua compreensão e respeito pelo poder das letras com certeza aumentarão.
O Zohar
O livro mais importante da Kabbalah é o Zohar, ou Livro do Esplendor. Foi composto em aramaico há dois mil anos por Rabi Shimon bar Yochai. Diz-se que Rabi Shimon recebeu o texto do próprio Moisés, assim
como Moisés recebeu a Lei diretamente do Criador.
O Zohar apresenta milhares de páginas de diálogos entre mestres e alunos discutindo incidentes da Bíblia e outros assuntos espirituais.
A estrutura do Zohar é enormemente difusa e de difícil compreensão. Tópicos abertos em um ponto podem desaparecer por longos trechos antes de ressurgirem. Talvez por causa da dificuldade do texto e 4 dos poderes que lhe atribuem, o acesso ao Zohar foi com freqüência severamente restringido. Durante ai séculos, apenas estudiosos do sexo masculino, casado, com mais de quarenta anos, tinham autorização para lê-lo. Agora o Zohar foi totalmente traduzido para o inglês pelo Centro de Kabbalah, e a Luz que reside nesse texto sagrado está disponível para todos.
Um ponto de virada na história da Kabbalah ocorreu no final do século XV. Com a ascensão do catolicismo fanático na Península Ibérica, um decreto do Rei Fernando e da Rainha Isabel expulsou todos os judeus da Espanha em 1492. Apesar de terem alcançado poder e influência na sociedade espanhola ao longo de muitas gerações, os judeus se encontraram em exílio mais uma vez, como acontecera diversas vezes na época bíblica. Essa experiência, e o desafio de interpretá-la, é crucial para o desenvolvimento da Kabbalah durante os cem anos seguintes — e em não particular para o trabalho do grande kabbalista Rabi Issac Luria.
Rabi Luria e tikun
Nascido em Jerusalém em 1534, Rabi Luria viveu numa época em que a vida judaica tinha sido radical-mente desestabilizada pela expulsão da Espanha e pelo senso de fragmentação e perda que a acompanhou. Ele começou seus estudos espirituais aos vinte anos de idade. Depois de anos em reclusão estudando o Zohar, urna visão do profeta Filas o instruiu a se mudar para a cidade de Safed, na Galiléia, onde uma comunidade intensamente espiritual havia se formado ao redor dos kabbalistas Rabi Moisés Cordovero e Rabi Joseph Karo. Nela, os preceitos cabalísticos não eram apenas estudados, mas colocados em prática proativa em todas as áreas da vida. Os Treze Princípios de Rabi Cordovero incluíam admoestações referentes à necessidade de se amar todos os seres, incluindo até os que nos atormentam; de compartilhar tudo que possuímos; e de se abster de julgar sob quaisquer circunstâncias.
Em Safed, Rabi Luria foi rapidamente reconhecido como um mestre espiritual e assumiu a liderança de um grupo de estudantes conhecidos como os Leõezinhos, por causa da designação do próprio Rabi Luria como Ari, ou Leão. Embora Rabi Luria não tenha escrito nada de próprio pulso, seus ensinamentos foram transcritos pelo kabbalista Rabi Chaim Vital. Rabi Luria viveu somente por três anos a partir de sua chegada a Safed, mas suas idéias são um elemento fundamental na sabedoria da Kabbalah e na herança espiritual de toda a humanidade.
Ele proporcionou uma nova perspectiva do Zohar, que consistiu, especificamente, na organização de assuntos cobertos em diferentes partes do texto. Ele também desenvolveu o conceito de tikun — geralmente traduzido como correção ou conserto — que lida com o objetivo da vida, a presença de dor e sofrimento, e a transformação final de toda a humanidade.
Abertura para a Luz
Um aspecto geral na história da kabbalah é sua progressão desde a inacessibilidade e supressão até a disponibilidade para a humanidade como um todo. O trabalho de sistematização do conteúdo do Zohar feito por Rabi Luria foi um passo nesta direção. Um passo adicional foi dado quase duzentos anos depois por Israel ben Eliezer (1700-1760, também conhecido como o Baal Shem Tov, ou Mestre cio Bom Nome).
Na Europa central, na época em que ele viveu, os estudos da ToM eram dominados pela erudição intricada e pelo raciocínio complexo. O Baal Shem Tov reacendeu um relacionamento altamente emocional e intuitivo com o Criador. Sua história pessoal parece uma história do Zohar, em que mendigos e artesãos humildes num dado momento se revelam sábios iluminados. Com certeza ele era muito diferente de Rabi Luria, que foi reconhecido desde o princípio como um intelecto brilhante. Durante a primeira parte da sua vida, o Baal Shem Tov era considerado uma pessoa de bom coração, mas um tolo ignorante. Ele realizava tarefas simples na sinagoga de sua cidade natal no sul da Polônia. Um belo dia, para estupefação geral, um rabino altamente respeitado subitamente anunciou sua intenção de se tornar discípulo do humilde faz- tudo da sinagoga. Nem é preciso dizer que isto calçou uma enorme sensação. O Baal Shem Tov logo formou um grupo grande de alunos, bem como ganhou adversários que sentiam que ele estava vulgarizando os ensinamentos sagrados. Em contraste com os complexos discursos místicos de Rabi Luria e dos outros kabbalistas de Safed, o Baal Shem Tov apresentava seus ensinamentos através de histórias e parábolas de elegância simples. Ao fazê-lo, ele tornou a Kabbalah acessível para todos que decidiam escutar e aprender. No decorrer deste livro, vamos nos basear muito nos contos do Baal Shem Tov.
Rabi Yehuda Ashlag (1886-1955) continuou seguindo a mesma trilha. Entre seus diversos escritos consta uma tradução completa do Zohar, do aramaico para o hebraico moderno, junto com um comentário detalhado do texto. Rabi Ashlag nasceu na Europa, mas viveu a maior parte de sua vida adulta em Jerusalém, onde fundou o Centro de Kabbalah em 1922. Sua obra foi continuada por seu aluno Rabi Yehuda Brandwein (1903-1969).
A historia da Kabbalah é uma revelação gradual do conhecimento para uma base de pessoas em contínua expansão. Aquilo que começou como uma tradição de conhecimento transmitido oralmente floresceu, num movimento que leva a erudição para pessoas comuns ao redor do mundo inteiro. De maneira nenhuma isto é um acidente ou coincidência. A disseminação dada vez mais ampla da sabedoria da Kabbalah é parte de um processo que vem se desenvolvendo, literalmente, desde o princípio dos tempos.
Kabbalah avançada
Os novos alunos de kabbalah são com freqüência pessoas instruídas e inquiridoras. Para eles, o elemento intelectual da Kabbalah pode ter um forte apelo. É bem sabido que muitos grandes pensadores perscrutaram esta tradição, e as semelhanças entre as idéias cabalísticas e a ciência mais avançada também se tornaram logo aparentes. Ao abrir o Zohar pela primeira vez, os estudantes podem se sentir como se estivessem entrando num universo alternativo de conhecimento arcano. As complicações, paradoxos e até mesmo as dificuldades encontradas podem ser parte da atração.
É verdade que o estudo cabalístico tende a ser intelectualmente desafiante, mas a Kabbalah não é matemática avançada. Não é simplesmente um sistema internamente consistente e auto-referencial, cuja própria complexidade justifica sua existência. As pessoas muito inteligentes gostam de usar suas cabeças da mesma forma como os grandes atletas gostam de exercitar seus corpos, mas, para entender a Kabbalah, devemos tomar cuidado para que isto não se torne um fim em si mesmo.
Este perigo revela-se em grande parte das publicações atualmente no mercado. A maioria dos livros sobre o assunto é extremamente difícil, se não de todo impossível de entender. Isto é devido, em parte, a um impulso para o sapateado intelectual que parece afligir os que escrevem sobre o assunto, em particular aqueles que descobriram a Kabbalah recentemente.
Isto não significa que sérios pensadores seculares não conheçam a matéria. Gershom Scholem, por exemplo, era imensamente instruído acerca da tradição, a partir de uma perspectiva acadêmica. Mas depois de ler umas poucas páginas de um livro acadêmico de Kabbalah, podemos nos encontrar num labirinto de discurso sobre as sefirot, a Shechiná e o Shulchan Arukh. Trata-se de conhecimento cabalístico, mas não de sabedoria cabalística. Na realidade, viagens deste tipo podem afastar o leitor da sabedoria do Criador, em vez de aproximá-lo. Tal sabedoria, dizem os sábios, consiste no poder de “ver o fim no início”, de reconhecer uma árvore totalmente crescida na semente recém-plantada, e, o que é mais importante, de expressar essa visão como ação no mundo físico.
No Centro de Kabbalah, apresentamos a Kabbalah como um sistema profundamente espiritual, porém prático, para melhorar sua vida em todas as áreas — com o entendimento adicional de que sua transformação pessoal apressará a união da humanidade com Deus. Nossa intenção é tornar a Kabbalah accessível, não inescrutável, principalmente porque a ultima opção foi a escolha de muitos autores.
Ao mesmo tempo, reconheço que a Kabbalah deve ocupar a mente, assim como o coração. Aqueles que descobrem novas analogias, paralelos ocultos e interpretações sutis do Zohar com certeza trazem alegria para o Criador. Todavia, sem, de maneira alguma, advogar um antiintelectualismo estreito na apresentação da Kabbalah em O Caminho, invoco uma observação de Shakespeare de que a verdade simples é muitas vezes equivocadamente chamada de simplicidade
A Kabbalah não deve jamais ser exposta como uma charada intelectual. O pensamento precisa sempre estar ligado ao sentimento, e o sentimento com a ação positiva imediata, onde quer que você esteja e com quem quer que você esteja.
A história a seguir foi contada muitas vezes, mas é tão forte e iluminadora que vale a pena repeti-la novamente. Na verdade, nenhum livro sobre a Cabala estaria completo sem ela.
Durante a época do Império Romano, um aluno perguntou ao grande sábio Hilel se ele poderia lhe ensinar toda a sabedoria do universo enquanto se equilibrava num pé só. Não existe registro de qual pé Hilel escolheu para se equilibrar, mas as palavras ditas por ele chegaram até nós atravessando os tempos. “Ama teu próximo como a ti mesmo”, ele disse ao aluno. “O resto é apenas comentário.”