A vergonha de Deus

A vergonha de Deus

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A VERGONHA DE DEUS 
(Autor: NĆ­lton Bonder, rabino e escritor)


O professor ouviu um ruĆ­do e foi olhar. No chĆ£o estava o Marquinhos, filho do vizinho, que tinha caĆ­do da varanda e sangrava profusamente. Mesmo sendo uma pessoa de idade, tomou o menino nos braƧos e comeƧou a correr desesperado para o hospital a poucas quadras. No caminho, vinha descendo a ladeira uma senhora que, ao vĆŖ-lo esbaforido, gritou: "Calma, professor... vai dar tudo certo. NĆ£o se apresse tanto. Deus vai ajudar... e o senhor jĆ” nĆ£o tem idade para correr assim com uma crianƧa no colo!" Ela entĆ£o se aproximou e, em pĆ¢nico, constatou: "Ai, meu Deus, Ć© meu netinho! Corre, professor, corre, pelo amor de Deus." 

O verdadeiro Deus estĆ” na urgĆŖncia que reconhece no rosto "um netinho", um seu. AtĆ© entĆ£o aparece o deus da idolatria, respaldado muitas vezes pela fĆ© que nĆ£o enxerga a urgĆŖncia do outro. A base das religiƵes bĆ­blicas Ć© o reconhecimento de que o ser humano Ć© a imagem e semelhanƧa de Deus. NĆ£o reconhecer esta semelhanƧa, seja num executivo do mundo financeiro nova-iorquino, seja num fanĆ”tico islĆ¢mico, seja num negro africano desnutrido, seja num chinĆŖs que nĆ£o parece diferente de outro chinĆŖs, Ć© a prova dos noves do sucesso ou falĆŖncia do establish ment religioso (de todas as religiƵes) de levar a verdadeira mensagem a seus adeptos. 

HĆ” vĆ”rios inimigos invisĆ­veis que estĆ£o ficando visĆ­veis nesta crise pela qual passa o mundo. HĆ” o inimigo de uma civilizaĆ§Ć£o que nos aliena em relaĆ§Ć£o ao outro. Uma cultura de fobia do outro e de sonharmos com um mundo de privacidade. Uma espĆ©cie de dessocializaĆ§Ć£o que nos leva a ser novamente nĆ“mades e coletores. NĆ“mades porque podemos estar em qualquer lugar, sem apreƧo e carinho pelo lugar; e coletores porque nĆ£o plantamos para o futuro, apenas para o nosso breve futuro pessoal. 

E a AmĆ©rica nĆ£o Ć© este mal, apesar de muitos simbolizarem-na como tal. Afinal, este mal pode estar mais vivo na ArĆ”bia Saudita, com seus sheiks e monarcas trilionĆ”rios, do que numa Nova York sĆ­mbolo de integraĆ§Ć£o entre raƧas, culturas e religiƵes. O mimado prĆ­ncipe Bin Laden, que Ć  moda de tantos filhos de nobres e milionĆ”rios do Ocidente precisa de um hobby para dar sentido Ć  sua pobre existĆŖncia, Ć© talvez mais ocidental do que seus seguidores o percebam. Sem deixar de reconhecer que o presidente Bush tem nas mĆ£os o potencial de uma guerra devastadora, seja na crise em si ou seja em posturas como as assumidas nas questƵes de comĆ©rcio internacional ou questƵes ambientais do planeta. 

Mas o inimigo invisĆ­vel maior estĆ” nas prĆ³prias religiƵes. NĆ£o que elas estejam em guerra. Elas nunca estiveram tĆ£o aliadas como na atualidade. Elas se compreendem porque funcionam de forma muito semelhante. SĆ£o elas a maior fonte de doutrinaĆ§Ć£o da juventude, mergulhadas que estĆ£o nas idĆ©ias de "certo" e "errado". Afinal nĆ£o foi desta Ć”rvore do "Certo e Errado" que comeram no paraĆ­so como pecado maior? 

Ɖ claro que os fundamentalistas e os fanĆ”ticos de cada uma destas tradiƧƵes sĆ£o o rosto deste mal, mas as tradiƧƵes religiosas nĆ£o realizam guerras santas contra esta heresia maior que Ć© nĆ£o reconhecer a urgĆŖncia do outro. As tradiƧƵes religiosas nĆ£o sĆ£o profĆ©ticas na denĆŗncia de si prĆ³prias, no compromisso absoluto com a Ć©tica e com uma visĆ£o universal. E se o IslĆ£ hoje estĆ” em evidĆŖncia, por mĆ©rito prĆ³prio, nĆ£o escapa tambĆ©m o judaĆ­smo com o fomento de fundamentalistas-nacionalistas. NĆ£o escapa a Igreja com seu corporativismo e idĆ©ias subliminares de salvaĆ§Ć£o por uma Ćŗnica porta. Ou o fundamentalismo evangĆ©lico que vĆŖ satĆ£ por todos os lados, ou, em outras palavras, inimigos por todos os lados. 

Enquanto as religiƵes nĆ£o cerrarem fileiras contra sua prĆ³pria heresia (esqueƧa-se a do outro!) elas serĆ£o parte do inimigo invisĆ­vel. E nĆ£o se trata de encontros ecumĆŖnicos e inter-religiosos como um cenĆ”rio de papelĆ£o Ć  frente de bastidores de intolerĆ¢ncia e soberba. 

O mundo marcha Ć  guerra e nĆ£o hĆ” vergonha maior do que a das religiƵes. Elas nĆ£o vĆŖem a urgĆŖncia porque nĆ£o ajudaram este mundo a compreender que qualquer morte Ć© a de um netinho. Que se prestem hoje no sĆ©culo XXI como pano de fundo para terror e horror Ć© um fracasso inominĆ”vel, vergonha inocultĆ”vel. 

O sĆ©culo XXI chegou com esta surpreendente novidade: ou percebemos que Ć© do "nosso netinho" que se trata a questĆ£o e nĆ£o de um outro virtual, ou perecemos. Isto porque o futuro serĆ” cheio do "outro", ao contrĆ”rio do que supunham os analistas. Falavam eles de um mundo de computadores, cada um trabalhando em casa, menos horas de trabalho, mais automatizaĆ§Ć£o, mais "eu" e menos "os outros" em nossas vidas. 

PorĆ©m o mundo globalizado nĆ£o Ć© um mundo grande, Ć© um mundo pequeno cheio de gente. O sĆ©culo XXI estarĆ” repleto do outro. Ɖ um outro cada vez mais numeroso - nunca existiram tantos outros em nenhuma era. E esse outro vive muito - nunca viveram tanto os outros em nenhuma era. Ɖ chegado o momento de abandonar o vĆ­cio da busca de inimigos. 

Os inimigos somos nĆ³s mesmos. E as religiƵes que nĆ£o buscarem este inimigo em si sĆ£o as religiƵes idĆ³latras desta nova era. NĆ£o se trata mais de ser monoteĆ­sta, isso Ć© passado. Trata-se de saber como cada uma delas honra este Deus Ćŗnico pelo respeito mĆ”ximo a seu semelhante. Dizia George Santayana que "o fanatismo consiste no ato de redobrar esforƧos por conta de se ter esquecido dos objetivos". 

As religiƵes parecem esquecer seu objetivo maior que nĆ£o Ć© reconhecer Deus apenas como sendo Um, mas cada ser humano, Sua imagem e semelhanƧa, como um ser Ćŗnico. E pelos que morreram, vergonha sobre nĆ³s religiosos. E pelos que irĆ£o morrer, mais vergonha! E quando estivermos vendo imagens pela televisĆ£o onde apareƧam crianƧas ou jovens ensangĆ¼entados, olhemos mais de perto - "serĆ£o nossos netinhos". 

Texto publicado no Jornal O Globo.

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