O QUINTO FILHO
R.. Nilton Bonder
A tradição rabínica faz uso de uma interessante forma de dialética a tetralética. Ao invés de um pensamento desenvolvido a partir de oposições na busca de unir contrários tese e antítese atingindo uma compreensão superior -- a síntese, os rabinos ressaltaram o centro entre os pólos como forma de atingir a síntese plena. O centro é sempre formado por duas categorias moderadoras o centro mais próximo de um pólo e o centro mais próximo do outro pólo. Os exemplos são fartos.
Para refletir sobre a posse, por exemplo, os rabinos reconhecem a categoria dos que pensam o que é meu é meu e o que é seu é meu (o apegado) e dos que pensam o que é meu é seu e o que é seu é seu (o desapegado). Mas entre estas categorias existem os mau resolvidos o que é meu é meu, o que é teu é teu e o que é teu é meu, o que é meu é teu. O primeiro, é o centro mais próximo do pólo apegado. Apesar de conter elementos de menor apego, sem dúvida, esta ainda é uma categoria do apego. A segunda, ainda que umas categorias próximas à tolice, confundindo noções de propriedade e contendo elementos de apego, está mais próxima ao pólo do desprendimento.
Outro exemplo pode ser tomado das quatro formas de temperamento (Avot 5:14). Nos extremos estão os difíceis de se zangar e fáceis de apaziguar (os de paz) e os fáceis de se zangar e difíceis de se apaziguar(os raivosos). Entre eles há os centro de paz difíceis de se zangar e difíceis de se apaziguar e os de centro raivosos fáceis de se zangar e fáceis de se apaziguar. Este jogo de apontar os centros aparece em exemplos como os quatro tipos de doadores (Avot 5:16), ou os quatro tipos de aprendizes (Avot 5:15) e assim por diante. A tal ponto esta tetralética é uma referência para os rabinos, que a própria Criação foi codificada em quatro mundos. Nos pólos estão os mundos material e etéreo e no centro os centro-material e o centro-etéreo. Conhecemos bem este tipo de pensamento através da política moderna que criou a percepção de uma esquerda e uma direita e que tem seus centros na centro-esquerda e centro-direita.
Para a experiência existencial existe o corpo e o espírito nos pólos. Seus centros são a emoção um centro mais próximo do corpo e o intelecto um centro mais próximo do espírito.
Na interpretação existem os pólos daqueles que se mantém íntegros e daqueles que se perdem. Entre o sábio e o herege estão as categorias do centro-sábio (autodestrutivo -- permanece íntegro à verdade ao custo de sua própria integridade física) e o centro-herége (o louco -- não permanece íntegro à verdade para preservar sua integridade física).
Hoje este paradigma da tetralética se encontra em cheque por conta do CAJU.
Mas aonde entra o caju em tudo isso?
Na celebração de Tu-Bishevat, o ano novo relativo às arvores, nos primeiros indícios de quebra do inverno e início da primavera, os rabinos criaram um jogo simbólico através dos frutos. Para marcar a tetralética eles apresentaram a idéia de que os frutos graça maior concedida pelo reino vegetal existem em quatro categorias. Os frutos totalmente resguardados (cascas e caroços não comestíveis abacate, manga...) e os totalmente entregues (cascas e caroços comestíveis morango, figo...) representam os extremos no reino dos frutos. Os centros ficam por conta dos frutos centro defendidos (cascas não comestíveis e caroços comestíveis banana, abacaxi) e dos centro-entregues (cascas comestíveis e caroços não comestíveis ameixa, oliva...).
Tudo muito bem até que apareça o caju.
O caju é uma quinta categoria. É verdade que muitos gostariam de enquadrá-lo como um fruto de casca comestível e caroço não comestível. Mas esta seria uma triste simplificação do caju. Não me refiro apenas ao fato de que a fruta do caju tem a estranha forma de externar seu caroço (seu caroço não é protegido pela casca, mas exposto) e representar uma forma extraordinariamente entregue; senão que seu caroço, aparentemente não comestível, é justamente a iguaria mais cobiçada do fruto a castanha de caju. Não conheço outro fruto onde o caroço é mais cobiçado para efeitos comestíveis do que o próprio fruto e onde caroço e fruto são externos uns aos outros. O caju traz problemas.
Os judeus brasileiros sabem que o caju traz problemas. Em particular porque este termo, muitas vezes utilizado de forma pejorativa, representa os filhos de casamentos mistos. Derivado das sílabas iniciais de católicos e judeus, o caju representa todos os filhos de casamentos entre judeus e pessoas de qualquer outra religião. Quem é o caju? Seria uma figura externa que está dentro, ou seria uma figura de dentro que está fora? Como encaixa-lo no paradigma vigente? Não há dúvidas: o caju traz problemas para a tetralética. Aliás tudo que está fora do pensamento ou da teoria traz problemas ou seriam desafios?
Sem saber, ou sabendo, os judeus brasileiros elevaram o caju a uma peça mítica o quinto fruto.
O caju é fundamental para compreendermos a própria noção de dialética ou tetralética. A dialética nada mais é do que a tentativa de lidar com o outro. O diálogo que é hoje esteio da ética e do entendimento humano baseia-se no fato de reconhecer na antítese do outro a possibilidade de uma síntese que seja a depuração de nossa própria tese. Os rabinos também buscavam isto com suas quatro categorias. Reconhecer o outro e também as nuances no comportamento humano era promover um ser humano melhor com maior compreensão de si e de seu semelhante. O caju pode, sem duvidas, levar este processo um passo a frente. O verdadeiro outro é o que não está no diálogo e que, de certa forma, questiona tanto tese como antítese. É aquele que não se encaixa na síntese e, portanto, a descontrói. Por um lado o caju é ameaça, por outro é desafio. Mas todos sabemos que ignorar a existência deste quinto-fruto não salva a síntese, muito pelo contrário, acelera seu processo de desintegração. Não há outra forma de honrar o esforço intelectual e espiritual do passado sem conduzir a ameaça à categoria de desafio.
Na Hagada de Pessach os rabinos exemplificaram através de sua tetralética, quatro categorias de pertinência a um grupo. O filho que se sente parte da cultura e o filho que se sente fora da cultura são obviamente os pólos. No centro estão os ignorantes uma espécie de centro daqueles que se sentem parte da cultura e os alienados uma forma de centro daqueles que não se sentem parte da cultura.
O CAJU é o quinto filho. Externo à cultura, ele não pode ser categorizado como ignorante ou alienado, nem mesmo como aquele que a rejeita. Estes tempos novos exigem a coragem de entender que talvez o externo, o próprio caroço difícil de se engolir, seja talvez a maior iguaria. Que mais que o fruto, sua importância está naquilo que é externo e em seu poder de construir e reconstruir o que é interno.
Talvez a grande surpresa seja justamente essa: o que hoje é não comestível, intragável, com o cuidado próprio, pode ser a maior iguaria. Tal como a cultura brasileira se faz conhecer mais pela castanha de caju do que pelo fruto que a maioria desconhece e jamais viu, não se assombrem se este for o novo paradigma: da castanha venha a surgir no futuro muito da identidade de uma cultura que o fruto em si não produz.